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Aqui e acolá

Abandono da terra natal é inaugurar uma vida nova e deixar laços de afeto para trás

 

Clara Deps e Enzo Pereira Cardoso


Terra natal é uma simples palavra que traz sentimentos diferentes para cada indivíduo que a ouve. O sentimento de nostalgia predomina naqueles que tiveram que optar pelo abandono de sua terra natal para outra cidade, memórias de uma vida que infelizmente não existe mais. O abandono da sua cidade de origem, seja ele forçado ou voluntário, vem com alguns percalços pelo caminho, a manutenção da sua própria cultura é constante colocada em contraponto com novas ideias, costumes e tradições. Esteja aqui ou acolá, uma coisa é certa, o cerne do indivíduo não se muda, suas experiências de vida o fizeram ser quem é, e suas futuras experiências moldarão quem ele será, mas nunca um sobrepondo o outro e sim uma soma de experiências e ideais que ditam o abandono ou permanência de uma cultura.



Blenda Galiano é um pedacinho de Igarassu, litoral de Pernambuco que veio parar em Campo Grande. A moça de 23 anos é de uma família de pescadores e tem um sorriso que a acompanha por aí. Blenda sempre fala que é de Recife, já que Igarassu é uma região metropolitana da capital, porém quando fala da sua cidade natal, faz questão de mencionar que é o lar da igreja mais antiga do Brasil segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. É uma forma que encontrou de pôr no mapa, a cidadezinha litorânea a 27 km da capital pernambucana.

O sotaque cantado é uma lembrança de uma terra de onde cresceu e morou com a família até 2020, quando se mudou com a mãe e os irmãos mais novos. A família foi para Rondonópolis, no estado de Mato Grosso, quando sua mãe se casou. No entanto, devido ao fim do relacionamento, a família se mudou um mês depois para Campo Grande, onde já tinham parentes. Hoje em dia, a mãe e os irmãos moram na Bahia e não pensam em voltar para a cidade morena “Não se adaptaram”.

Blenda relata que uma das maiores dificuldades de adaptação foi o clima. “Eu nunca passei tanto frio na vida. Na minha cidade, o máximo que chegava era 24 °C e para a gente, já era o máximo para colocar moletom e falar ‘Que frio da mulesta’”. A comida também foi um dos choques. Desde que começou a trabalhar em Campo Grande, ela aprendeu a cozinhar e ao conversar com os colegas de trabalho sobre a comida do almoço, estranhava, “Todo mundo tava comentando que era ‘bobó’ para mim era bobó de camarão, achei até chique, quando cheguei lá era bobó de frango”.

A época de festas também se tornou uma estranheza, a região Nordeste é famosa por festas de carnavais de rua, com várias danças, alas e músicas típicas, reunindo mais de 3 milhões de pessoas em 2024 só na cidade de Recife, segundo o site da prefeitura da capital. Já em Campo Grande, o carnaval é composto por bloquinhos de rua fixos, que em comparação a festa na cidade natal de Blenda, é bem menor. “O maior bloco de rua do mundo é de lá, acho que eu esperava mais daqui nesse quesito, pensava que no Brasil inteiro era o mesmo, mas entendi que não. Carnaval em Pernambuco é feriado, casas decoradas, som alto tocando frevo, a la ursa, um espetáculo performático, blocos de família etc., são quase duas semanas de festa, e aqui é só uns dias”. Quando vieram para Campo Grande, Blenda e sua família fizeram questão de comemorar o feriado de São João e o carnaval aqui, que são datas festivas muito marcantes em Pernambuco, mas não são tão fortes aqui. Os costumes que eram tão presentes lá não morreram, mas se renovaram e formaram outro lar, misturando a cultura sul mato-grossense e a pernambucana.

 








Eduardo Augusto de Oliveira cresceu em Cuiabá, no estado do Mato Grosso e tinha 9 anos quando veio para Campo Grande.

O jovem tem 22 anos e, apesar de ter vivido quase toda a sua infância fora de Campo Grande, nasceu na capital e foi para Cuiabá recém-nascido. Ele conta que a mãe é de origem campo-grandense e queria que ele e o irmão mais novo nascessem na cidade morena. Assim, quando os pais se divorciaram, eles se mudaram para a cidade natal.

Quando Eduardo chegou a Campo Grande, o que mais estranhou foram as pessoas. “No início, estranhei muito a falta do toque humano aqui; até membros da minha família eram mais reclusos nas interações.” Diferente de onde cresceu, onde tinha muito contato com o campo e o interior, a adaptação à capital foi uma barreira. Ele também descreve a cidade como silenciosa, já que sempre cresceu com música tocando onde morava.

Por mais que Cuiabá também seja uma capital, Eduardo relata que a vida no campo e interiorana foi a maior parte da sua infância, e quando chegou a Campo Grande, viu a cidade de um jeito diferente. “Sinto que perdi grande parte do meu sotaque e modo de falar, e algumas tradições que normalmente minha família passaria para gerações futuras”. O sotaque é uma coisa que ele afirma que não permaneceu nele, porém, seu irmão mais novo ainda fala de um jeito parecido e não “perdeu” o costume.”

Apesar das dificuldades iniciais, Eduardo reconhece que Campo Grande tem sido fundamental para seu crescimento pessoal. "Atualmente, eu gosto muito de Campo Grande. É a cidade onde estou a maioria da minha vida e onde tive a maioria do meu amadurecimento como pessoa". 













Marcos Silva nasceu em Valença, no litoral da Bahia. Em 2012, ele decidiu mudar-se para a capital morena em busca de novas oportunidades e desafios.

Quando questionado sobre o processo de adaptação à nova cidade e cultura, Marcos relembra o choque cultural que enfrentou. “O tempero da comida, o clima frio, tudo era muito diferente do que eu estava acostumado,”. Além das diferenças no clima e na culinária, ele destaca como a mudança afetou seu jeito de falar e os costumes diários. “Mudou algum palavreado. Eu ia muito à praia,” comenta, ressaltando a desconexão com algumas tradições de sua terra natal.

Apesar das mudanças, Marcos ainda preserva alguns costumes da Bahia. “Oxente, menózinho,” diz, rindo, ao mencionar expressões típicas que ele ainda usa no dia a dia. No entanto, ele observa que certas particularidades culturais de Valença não são vistas em Campo Grande.

Marcos menciona como a cultura em Valença é mais voltada para a vida ao ar livre e a convivência próxima com a natureza, algo que ele sentiu falta ao se mudar para Campo Grande. “Em Valença, a cultura de frequentar a praia e ter um contato próximo com a natureza é muito forte. Esse costume de passar o tempo ao ar livre é algo que não vejo com a mesma intensidade em Campo Grande”.

Marcos aproveita as atividades locais e aprecia a segurança da capital. “Gosto muito de Campo Grande. É uma capital menos violenta”. Ele desfruta das atividades locais, frequentando o centro da cidade e o Parque das Nações.

Atualmente, Marcos mora em Campo Grande com sua esposa e filha, mantendo contato constante com o restante da família que ficou na Bahia. “Falo direto com a família e vou frequentemente para a Bahia”.

 




















Gabriela Quinteiro é natural de Penápolis, no interior de São Paulo. O trecho da música do Trio parada dura, “As andorinhas”, além de ser o famoso “sertanejo raiz”, que retrata vida interiorana, ainda traz consigo uma mensagem que  vale para muitos os que saem do conforto de seu ninho, para desbravar mundo afora, mas mesmo que atribulada seja a viagem, sua terra sempre estará a esperando. 

A jovem de 20 anos, veio de uma cidadezinha de 70 mil habitantes, que a criou e ensinou sobre a vida, proporcionou momentos inesquecíveis da infância e foi o palco de suas memórias. Em 2021, a vida tinha outros planos. Ao se formar na escola, Gabriela prestou vestibular para Ciências Econômicas na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e para a sua surpresa, passou.

Se mudou para uma cidade de quase um milhão de habitantes e começou um novo capítulo em sua história. A migração entre estados é um relato muito comum para estudantes das federais pelo Brasil, geralmente motivada pela vontade de mudança de vida, Gabriela conta que tomou a decisão de mudar de cidade para buscar uma formação adequada, em uma boa universidade. Ela complementa que sua adaptação a cidade morena não foi difícil, “a cidade tem um ‘quê’ de interior que me fez sentir em casa, a calmaria de domingo para um passeio no parque, além de que fui muito bem acolhida por amigos da faculdade, o que ajudou na minha adaptação”.

Embora a facilidade de adaptação ainda assim todos têm que abandonar algo em busca dos seus sonhos, no caso de Gabriela foi o conforto da vida com seus pais. Ela começou a morar sozinha, em uma cidade nova, sem conhecer muitas pessoas, à mercê das suas futuras escolhas e atitudes. Assim estruturou sua nova vida  e conta que por mais que não seja sua origem, Campo Grande se fez sua casa.

 



Matheus Castro é natural de Belo Horizonte, Minas Gerais e continua desbravando Campo Grande. Em 2021, ele teve uma virada de chave em sua vida, onde se mudou para a capital  morena por conta de seu trabalho no exército. Diferentemente da Gabriela, Matheus teve problemas na adaptação, “especialmente porque as pessoas aqui em Campo Grande são menos receptivas e mais frias em suas conversas comparado com Belo Horizonte. Isso foi algo que achei bem diferente e estranho no começo. Além do atendimento ser consideravelmente pior”.

O motivo da sua vinda para a cidade, foi diferente também, por ser oficial do exército, a mudança entre cidades é algo comum nesse meio e Matheus, como um oficial, teve que deixar as terras mineiras para desbravar um novo mundo. Mesmo em coisas pequenas e simples, Matheus sentia falta de sua casa, “Em Belo Horizonte, a cultura de frequentar botecos e ter longas conversas informais com amigos e familiares é muito forte. Esse costume de passar horas conversando de forma descontraída nos bares é algo que não vejo com a mesma intensidade em Campo Grande”.

Para alguém que vem de uma vivência alegre, de muita comunicação e festividades, vir para uma cidade onde as pessoas não são receptivas foi um problema na adaptação de Matheus, o calor na temperatura da cidade não combinou com a frieza das pessoas, mas  apesar das dificuldades ele relata que Campo Grande é uma cidade que ele “aprendeu a gostar”.

 

Mais lá do que aqui


A razão pela qual os seres humanos nunca foram extintos é a capacidade de se adaptar a qualquer ambiente e sobreviver nele. Dessa forma, a determinação dos que migram para outra cidade é crucial para a sua adaptação, de modo a entender as pessoas do local, a maneira como agem e lidar da melhor forma possível. Embora essa habilidade de convivência e a  criação de novos laços aconteça, o lar só recebe esse nome, pois lhe é concedido por meio de anos de vivências e experiências, então a saudade sempre baterá à porta. 

Em um momento de nostalgia, Eduardo Augusto de Oliveira relembra de seus momentos com sua avó, quando ela fazia bolinhos fritos para ele e seus primos, com todos ao redor dela, aproveitando as mãos mágicas que as avós têm para a culinária. Ele conta também sobre os seus momentos em família que eram muito mais comuns. “Um costume culinário que minha família ainda tem é fazer canjica usando amendoim, algo que não vejo aqui, e também tomar café no final da tarde, algo que é muito comum lá. Eu tinha muito contato com a cultura do campo/interior, algo que aqui eu perdi, uma parte importante da minha infância”.

As comidas típicas da cidade natal de Blenda também têm um lugar especial em seu coração. "Cuscuz com peixe de coco, macaxeira com charque, bolo de rolo, canjica de corte, um feijãozinho bem temperado, todas as comidas lembram muito minha mãe, minhas tias e minhas avós, todas são especiais para mim," diz Blenda, com saudade.

Gabriela também conta como eram suas experiências de vida em Penápolis, que aos olhos de uma pessoa que viveu toda a sua vida em uma cidade metropolitana, soam como irreais. “Na minha cidade, temos o costume de frequentar clubes, nos quais os sócios vão para praticar esportes, aulas de dança, aulas de futsal, vôlei, natação, judô, biribol, basquete, ou até mesmo apenas para brincar e conversar com os amigos. Há atividades para todo o público, desde bebês a idosos”.

Muitas vezes, os pais deixam os filhos nos clubes enquanto trabalham, seja com babás ou alguma cuidadora, ou no caso de crianças e adolescentes mais velhos, sozinhos, com os amigos, pois como são clubes fechados, não há perigo de as crianças saírem sem supervisão. “Entre os meus amigos, ainda é um costume nos reunirmos no clube quando eu os visito, há também muitos campeonatos internos e ainda participo quando estou na cidade”. Essas experiências únicas da vida interiorana, que moldaram Gabriela, são seus ideais que seguiram com ela, independentemente do local que ela viva e das culturas com que ela se choque. 

 

“Belo Horizonte que adoro
Era das noites pelos botequins
Era das festas de serenatas
De flores nos jardins”

 

A música de Pacifico Mascarenhas, “Belo Horizonte Que Eu Gosto”, retrata muito do que Matheus relata da sua vivência, até mesmo de seu hobby pessoal. Ele conta que tinha costume de conhecer bares e restaurantes novos pela sua cidade, ficava com seus amigos até tarde da noite, eram tempos simples, e por mais que ele ainda tenha essa prática, a experiência não é a mesma, até porque não há lugar como nosso lar, já diria a personagem Dorothy de O Mágico de Oz.

O antropólogo Álvaro Banducci fala que  por mais que haja um distanciamento da sua terra natal,  a cultura nunca é apagada, apesar da urbanização trazer uma padronização das culturas, por meio da midiatização de massa, em que uma cultura é postada como superior a outras. A vinda de pessoas de outras vivências e costumes para centros culturais cria um efeito de resistência a essa padronização, lutam uma guerra que não foi declarada por eles, mas pelos dirigentes da nossa sociedade. A junção desses estilos de vida é feita de um estilo antropofágico, em que nenhuma cultura se perde, mas sim se adapta, redesenha-se, “uma pessoa que é de origem indígena, não deixa de ser porque nasceu e vive na cidade, suas raízes sempre foram e sempre serão de lá, suas tradições são ressignificadas, para sere praticadas ainda”.

A maquinação do campo, o agronegócio, a monocultura, são muito presentes no nosso estado, o que cria na visão de Álvaro, uma nova cultura imposta aos sul mato-grossenses,  mas que também é um novo ponto de partida para um redesenho do estado. Não é necessário abandonar a antiga cultura do caipira, ou do sertanejo, para abraçar a nova, é sempre algo miscigenado, em que o choque cultural produz novos costumes e tradições, formando o cerne de Mato Grosso do Sul. Assim, como as experiências de Blenda, Eduardo, Marcos, Gabriela e Matheus.

As mudanças, quando motivadas pela busca de uma vida melhor, nunca são fáceis. É necessário um planejamento cuidadoso para decidir se essa é realmente a melhor decisão. Mesmo quando se sabe que a escolha foi correta, o lado sentimental dos seres humanos, muitas vezes reprimido em prol da busca por qualidade de vida, se liberta e inevitavelmente se expressa em forma de saudade. O pesar por deixar as pessoas amadas, a dor de partir sem saber quando ou se irá voltar, e o sentimento de abandono quase forçado são como um passarinho que acabou de aprender a voar e agora se vê obrigado a traçar seu próprio rumo, a conquistar sua autonomia.

 Mesmo sentindo falta de casa, da família, dos amigos, dos costumes e tradições, todos são deixados para trás para que uma nova vida comece, com novos colegas e novas pessoas. Assim, o abandono da terra natal se torna uma dualidade entre deixar o que se ama para trás e buscar um futuro promissor. É uma jornada de encontrar um novo amor, uma nova paixão pela vida, enquanto se carrega no coração as lembranças e a saudade do que ficou para trás.

 


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