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Autodiagnóstico na era digital: quando a saúde mental vira brincadeira

Com apenas um clique, transtornos mentais se tornam alvo de piadas e falsas informações carregadas de preconceito


Mileny Rodrigues e Rafaela Ribeiro



Mensagens como “O paciente mais fraco do Caps”, “Acordei com depressão”, “Eu com TDAH”, acompanhadas de vídeos de pessoas em situações constrangedoras com teor de humor têm se tornado virais nas redes sociais. Além também dos autodiagnósticos realizados de forma on-line sem nenhuma prescrição médica, como o famoso “Teste do Ursinho Pooh” (ilustração), que serve para identificar traços de transtornos como Ansiedade, Autismo, Déficit de Atenção, Esquizofrenia, Transtorno Compulsivo-Obsessivo (TOC) e Depressão. E apesar de estarem se tornando populares agora, a banalização do diagnóstico de transtornos e doenças mentais é algo instaurado na nossa sociedade há muito tempo.

 

Individual Differences Research é uma plataforma com diversos testes de personalidade (Imagem reproduzida da Internet)


A médica psiquiatra Cristina Harada explica que mitos e crendices surgem por erros de interpretação e se estabelecem no folclore popular. E como exemplo, ela conta sobre a crença pioneira na Medicina, quando a população acreditava que a mulher poderia ter psicose e crises histéricas por não cumprir a “dieta” do pós-parto imediato ou por lavar o cabelo no período menstrual. A origem está ligada à teoria do pai da Medicina, o grego  Hipócrates (século V a.C.), na qual havia uma tendência a medicalizar o corpo feminino e associar quase todos os problemas de saúde mental à biologia sexual e reprodutiva das mulheres.

 

Até aquele momento, na origem dos estudos de Hipócrates, as mulheres eram denominadas como endemoniadas ou possuídas, e foi a partir dessa teoria que essas manifestações se tornaram assunto no campo das ciências naturais. “Embora sua teoria hoje pareça ridícula, foi um marco na introdução da Medicina. As explicações que ele encontrou vingaram e ainda hoje encontramos comunidades rurais e primitivas que acreditam nelas, assim como existem comunidades que também acreditam na versão da possessão demoníaca e da obsessão espiritual”, explica a psiquiatra.

 

Um exemplo mais recente dado pela médica circulava  até pouco tempo, há  aproximadamente 25 anos. “Outro mito que existia muito forte, quando eu era residente ainda, era que a pessoa tinha aberto um quadro de esquizofrenia ou de transtorno bipolar porque ela tinha sido frustrada no vestibular. Ou porque tinha terminado o relacionamento com ela. Daí por causa da dor, da frustração amorosa, que ela abria o quadro de psicose, de esquizofrenia”, completou. Casos como esses foram sumindo com o tempo por conta das informações corretas que eram encontradas na internet com mais facilidade, mas o preconceito pode ter se enraizado através dessas ‘historinhas’.


“O autismo é único”

Nanthyelle Torres, de 29 anos, é mãe de Murilo, de cinco. Murilo sempre foi uma criança diferente das outras. Demorou um pouco mais para andar, para falar, até para fazer coisas mais simples como mandar tchau e beijo. Ela, que estuda Pedagogia e sempre trabalhou na área infantil, foi percebendo essas diferenças entre seu filho e outras crianças da mesma idade, até que procurou apoio médico, e assim, Murilo com apenas um ano e oito meses foi diagnosticado com autismo. “Quando a gente recebe o diagnóstico, passa por um luto. Durante a gestação, você imagina que seu filho vai ser de um jeito e quando você recebe o diagnóstico é como se aquele que você imaginou morresse, porque você não sabe o que esperar. O autismo é único, ele é um transtorno que afeta cada criança de uma forma”, relata a mãe. A partir disso, o dia a dia deles passou a ser diferente.


Murilo tem hipersensibilidade tátil, dificuldade de comunicação e interação (Imagem: Mileny Rodrigues)


No começo, a luta foi para conseguir iniciar o tratamento pela rede pública, que era uma sessão de apenas trinta minutos por semana. A procura também era grande pelos auxílios governamentais, já que Nanthyelle precisava ficar em casa para conseguir dar suporte a seu filho. A situação seguiu até ela conseguir uma vaga de emprego como auxiliar de educação, visando sempre tentar melhorar o tratamento de Murilo, e conta que seu primeiro salário foi destinado a pagar um plano de saúde. Hoje, o acompanhamento é mais intensivo, com consultas de fonoaudiologia, terapia ocupacional e fisioterapia duas vezes na semana, e análise comportamental em casa durante quatro horas por dia. “Houve uma mudança muito significativa no comportamento depois que ele começou a intensificar o tratamento. Ele começou de verdade há dois meses. Hoje ele dá tchau, ele manda beijo, ele atende pelo nome, pronuncia algumas palavras, coisas que ele não fazia”, explica.

 

Mesmo com as melhoras na vida de Murilo, ainda existe um empecilho que diariamente está atrapalhando os dois, que é o eterno preconceito. Não demora muito a sair na rua e encontrar pessoas que prometem ter “a cura para o autismo” ou medo de “pegar a doença”, pessoas leigas que pouco sabem sobre o autismo e estão sempre dispostas a opinar. “A gente encontra muito essas questões dos olhares. Também já chegou o fato do meu esposo estar com ele no ponto de ônibus e o Murilo começou a ter um comportamento inadequado de uma birra, o meu esposo falou ‘eu não vou te pegar no colo’ porque faz parte do tratamento dele, a gente precisa começar a colocar limites. Aí veio uma pessoa que a gente nunca viu na vida e pegou o Murilo no colo, pra acalmar”, finaliza Nanthyelle.

 

O autismo é apenas um dos mais de 300 tipos de transtornos mentais catalogados. Problemas de saúde mental têm se tornado cada vez mais comuns em todo o mundo. O transtorno de ansiedade, por exemplo, atinge mais de 260 milhões de pessoas. Aliás, o Brasil é o país com o maior número de pessoas ansiosas: 9,3% da população, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Novos dados mostram que 86% dos brasileiros sofrem com algum transtorno mental.

 

São diversos os empecilhos que existem no diagnóstico e no tratamento, que poderiam ajudar essas pessoas. E agora há também o grande problema dos autodiagnósticos, que estão se tornando recorrentes, principalmente entre jovens. Isso leva à “medicalização”, um processo em que pessoas banalizam emoções e começam a se medicar sozinhas. Segundo a médica Cristina Harada, está cada vez mais difícil para as pessoas lidarem com sentimentos do dia-a-dia, como tristeza, raiva, agonia e cansaço. Assim, muitos começam a procurar motivos para estas emoções e chegam a conclusões precipitadas, achando que estão com depressão ou transtorno de ansiedade, por exemplo.

 

“Por vezes, o paciente já chega com o autodiagnóstico e o nome do remédio que quer tomar. Sei de casos em que até conseguiram convencer o psiquiatra assistente. Isso é muito perigoso. Por exemplo, se você tem genética bipolar e toma metilfenidato inadvertidamente para TDAH, que talvez nem tenha, pode abrir um quadro de psicose maníaca bipolar que vai perdurar para o resto da vida com fases de hipomania, psicose maníaca e até depressão suicida. Isso se chama Iatrogenia, quando um tratamento induz o surgimento de algo ainda pior”, detalha a psiquiatra.


(Arte: Rafaela Ribeiro)


Plataformas como TikTok, Instagram e Twitter tornaram-se espaços populares para compartilhar conteúdos rápidos e informativos sobre saúde mental. Vídeos curtos e publicações fornecem descrições de sintomas e brincadeiras, o que pode levar as pessoas a se identificarem com as descrições de uma maneira superficial. Por mais que as redes sociais ajudem na conscientização, o formato simplificado dessas plataformas pode resultar em informações incompletas ou imprecisas, incentivando autodiagnósticos sem a devida avaliação profissional. Muitos usuários, especialmente jovens, utilizam a internet para explorar sua identidade e encontrar validação em suas experiências emocionais.

 

Diagnósticos e rótulos podem fornecer um sentimento de pertencimento ou uma maneira de compreender e explicar comportamentos ou emoções difíceis de lidar. Isso fez com que a saúde mental e os transtornos psicológicos se tornassem temas de conteúdos de entretenimento. Muitas vezes, memes sobre Depressão, Ansiedade ou Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) são compartilhados de forma leve ou humorística, o que pode trivializar a gravidade dos transtornos. Embora o humor possa ser uma forma de lidar com questões difíceis, a popularização de brincadeiras envolvendo termos médicos pode reforçar a ideia que transtornos mentais são rótulos comuns, em vez de condições sérias que exigem atenção profissional.

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