Moradias sem conforto térmico são a realidade de pelo menos 210 mil famílias sul-mato-grossenses
Eduardo Boiago e Yasmin Figueiró
São oito horas da manhã e o ventilador já não dá mais conta de refrescar o ambiente abafado. O que resta é tomar mais um banho, mas ao sair do banheiro o suor já escorre pela testa novamente. A busca por uma vestimenta mais leve, clara e menos colada ao corpo é frustrante. E trocar de cômodo não adianta: o calor persegue. O teto baixo da casa só piora a dissipação do ar aquecido que sufoca. Nada ameniza a sensação de sentir o corpo quase colapsando de tão quente, a dor de cabeça e a fadiga. O calor está presente em diversos momentos do nosso cotidiano, mas o que fazer quando ele se torna intolerável dentro da nossa própria residência?
O pé direito baixo dificulta a circulação de ar e dissipação do calor pela casa. (Foto: Yasmin Figueiró)
Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), 2023 teve o inverno mais quente dos últimos 63 anos. Nos meses de agosto e setembro houve redução de chuva, e as temperaturas médias do país se elevaram em 1,5ºC em relação ao esperado para esse período. Conforme o levantamento, a região Centro-Oeste foi uma das mais afetadas e que mais teve alterações no clima.
Marilde de Oliveira, 57, reside no bairro Jardim Centro Oeste, em Campo Grande (MS), um bairro em que o rendimento nominal médio mensal dos domicílios é de cerca de um salário-mínimo, e a média de moradores por domicílio é de 3,17, segundo o Perfil Socioeconômico de Campo Grande da Agência Municipal de Meio Ambiente e Planejamento Urbano (Planurb). Marilde não consegue ficar dentro da sua própria casa, e as noites de sono têm sido insuportáveis – o ventilador já não dá mais conta de expulsar o calor. Agora, ela ainda precisa dobrar os cuidados com seu quadro de pressão baixa, que costuma piorar nessa época do ano.
Na tentativa de fugir do ambiente quente de dentro de casa, Marilde e sua família passam o tempo livre na varanda, tomando um suco bem gelado. A agonia de ter que suportar os cômodos aquecidos da casa – frutos do mau planejamento térmico da construção – fizeram os moradores levarem a televisão e o sofá para a garagem da residência.
Em 1948, a moradia adequada tornou-se um direito humano universal, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ter uma casa, no entanto, não se resume apenas ao conceito físico de edificação – um teto e quatro paredes. Segundo o documento, para serem chamados de moradia, os locais devem ser salubres, com condições mínimas à sobrevivência e incluírem, portanto, habitabilidade, que define o grau de adequação do domicílio às boas condições de proteção a qualquer fator que coloque em risco a saúde e a vida das pessoas.
E não é só Marilde que sofre com problemas de saúde agravados pelo calor. Viviane de Brito Espíndola, 39, diz que seu marido passou a reclamar da indisposição que sente por conta do clima quente. “O meu esposo reclama de cansaço, mas não de excesso de trabalho. Ele fala que sentiu dor de cabeça, que se sente muito ofegante devido ao calor”, explica.Além do marido, Viviane afirma que seu filho sofre de bronquite, e que o calor está agravando esse diagnóstico. “[Durante] o dia é super calor, quase 40 graus, de noite esfria um pouco e, no outro dia, calor novamente. A saúde dele se debilitou, né?”, conta ela.
Residentes do mesmo bairro, Maria Helena Santos, 57, e José de Lima Santos, 49, assim como Marilde e sua família, não conseguem permanecer dentro de casa. Só possuem um ventilador e não o ligam todos os dias, devido ao ar muito quente que sai do eletrodoméstico. “A gente não aguenta. Liga o ventilador e não aguenta, está muito quente”, desabafa Maria. José reclama da indisposição que sente durante seus turnos de trabalho. Durante a noite, eles optam por dormir fora de casa, na varanda, porque mesmo abrindo todas as esquadrias da residência, o calor permanece.
Segundo a pesquisa Síntese dos Indicadores Sociais, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 45 milhões de brasileiros residem em cerca de 15 milhões de residências com pelo menos uma das chamadas “inadequações habitacionais”. Ou seja, pelo menos uma em cada cinco pessoas não possui a moradia adequada exigida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2019, foi divulgada uma pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, que apontou problemas em mais de 5,8 milhões de moradias. Esse número se refere aos domicílios que apresentam déficit habitacional – aqueles que são inadequados, que foram construídos com materiais improvisados ou de baixa durabilidade.
Marilde tem problemas com sua pressão. Viviane tem um filho pequeno que vive uma piora no quadro de bronquite. José fica indisposto durante o serviço. Todos eles sentem que a exposição constante ao calor dentro de casa mudou a vida e até a saúde de cada um. E isso é fatídico. Segundo o artigo de revisão clínica da Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (RBMFC), o estresse pelo mormaço e a insolação ocorrem quando o calor sobrecarrega a resposta termorreguladora do corpo. O estresse ou a exaustão pelo clima quente são doenças leves e moderadas devido à perda de sal e água durante a exposição ao sol, e podem progredir para uma insolação, a qual, por sua vez, pode levar ao óbito.
Pelo menos 210 mil Marildes, Josés e Vivianes não se sentem confortáveis dentro da própria residência. Esse número corresponde ao relatório de uma pesquisa da Fundação João Pinheiro (FJP), feita em 2020, sobre a inadequação de domicílios em Mato Grosso do Sul. São 210 mil famílias que possuem o seu direito à moradia adequada infringido.
Sancionada em 2008, a Lei nº 11.888 garante que as famílias de baixa renda possuam acesso à assistência técnica pública e gratuita para projetos e construções de interesse social. Ela faz parte do que está previsto no art. 6º da Constituição Federal, que descreve todos os direitos sociais que os brasileiros devem ter. Apesar da lei, segundo levantamento realizado em 2021 pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), apenas 20 municípios em 10 Estados brasileiros, além do Distrito Federal, possuem a Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS). Isso mostra que a inadequação edilícia é, em grande parte, de responsabilidade do governo, que pouco se mobiliza para garantir moradias dignas à população.
Casas mal planejadas são a realidade de, pelo menos, 210 mil famílias em MS. (Foto: Yasmin Figueiró)
Em Campo Grande, MS, somente em agosto de 2023 foi lançado o 1º Edital de ATHIS do CAU/MS. Um importante passo para a promoção de melhorias habitacionais no Estado de Mato Grosso do Sul. Um importante passo na melhoria da qualidade de vida de 210 mil famílias que não conseguem dormir dentro da própria casa. Um importante passo para tantas Marias, Josés, Marildes e Vivianes espalhadas pela capital.
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