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Cometa Halley

Atualizado: 18 de dez. de 2023

“Caótica, colorida e quem vê de fora vai se atrair ‘nossa que coisa fofa’ e aí ela vai lá te dá uma mordida”. Essa é Halley Star a drag queen que veio para brilhar


Mariana Viana e Rebeca Ferro


Quatro anos após a aparição do cometa Halley, nasceu Aline Padilha, que amava balé, maquiagem e animes. Ela mal sabia que ele iria voltar antes da data marcada, em 2017, mas não o que cruzou os céus em 1986, e sim o de dentro dela. Não foi necessário um telescópio para ver a primeira aparição de Halley Star por Campo Grande, ela podia ser vista a olho nu, bem no meio das ruas da cidade. Esse cometa já não era mais um corpo celeste, agora ele se apresentava em um corpo feminino que desfila sobre saltos altos.

Halley Star brilha por onde passa, cada traço seu parece ter saído de um sonho, e de fato é. Ela surgiu como a personificação dos sonhos de uma criança. A personagem principal de uma história inspirada em mangás, desenhada à mão, pedaço por pedaço, para alcançar o seu máximo. “Eu gosto de deixar minha boca maior, meu nariz mais fino, um olho bem maior, porque eu gosto muito dessas coisas meio cartunescas, meio anime”.

O cometa Halley Star. (Foto: Arquivo Pessoal)


A cada vez que esse cometa aparece, tudo ao redor de sua órbita se modifica.  Para quem vê de fora, a percepção do surgimento da persona com nome de estrela é clara. Ao invés de deixar uma chuva de meteoros por onde passa, o que fica é um rastro de caos e purpurina. “Tinha dia que [a montagem] começava lá no quarto, e daí já vinha para mesa e o balcão ficava todo ocupado. A casa se monta com ela, é exatamente isso”, é assim que Bruna Nogueira, esposa de Aline, descreve como são os dias de aparição de Halley.

Foi curiosa a forma como Bruna parecia estar falando de uma pessoa que ela não tinha tanta intimidade. Na verdade, é isso que acontece quando Halley entra em cena e a Aline se retira. “São duas pessoas completamente diferentes, eu só seguro a bolsa da Halley porque eu não sou casada com ela, eu fico tipo ‘E aí Halley, tudo bom? Vai lá que a gente compra uma cerveja para você e põe o canudo”. O astro mais parecia ter saído direto das passarelas de um reality show. “Sou super fã de RuPaul, porém nunca achei que teria uma RuPaul em casa. Mas é legal”, comenta Bruna.

O reality show de drag queens mais famoso do mundo, RuPaul's Drag Race, teve grande importância para a construção de Halley. Mas foi assistindo uma das edições da Corrida das Drags, competição campo-grandense de drag queens, que Aline percebeu que a realidade também podia ser como um show.  Naquela noite foi uma drag também de nome celeste, Andrômeda Black, que permitiu a ela pensar que poderia brilhar também. “Se nós temos isso aqui, com esse nível de qualidade, eu quero também”. Para Aline, estar naquele lugar rodeada de pessoas que torciam pelas drags como se torce pelos times de futebol mudou tudo, inclusive ela.


A mulher por trás do cometa 


As inspirações de Aline, não são apenas externas, mas também internas. A artista de 33 anos cursou artes visuais na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e moda na Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (Uniderp). “Eu comecei pensando nessa inspiração não só nas maquiagens e nos cabelos. Em como misturar essa cultura do anime com drag, e também com um pouco de brasilidade. Porque, como eu tenho essa formação em moda e artes visuais, eu faço muito essa mistura, essa tradução de um estilo japonês para o Brasil”.

Aline Padilha em sua sala. (Foto: Rebeca Ferro)


A drag queen é uma composição artística que junta beleza e técnica. “Eu acho que como toda expressão artística, drag é bem isso, é arte. É um meio de expressão que eu acredito ser muito importante”. Na utilização de materiais alternativos como papel e plástico e não apenas pano, a criatividade ultrapassa os limites da realidade e se torna algo fantástico. “A minha bagagem com o curso me trouxe essa visão, e é algo que eu exploro muito com a drag”. 

Sentadas no canto da sala que vibrava junto às suas cores, nós percebemos a diferença entre Aline e Halley. Ao contrário de Halley, uma figura de gestos expansivos e dramáticos, Aline pouco gesticulava com as mãos, não falava alto e sempre usava um tom calmo para se expressar. Os únicos momentos em que ela se mostrava mais aberta era quando sua esposa ou seus animais de estimação, duas cachorras e um gato filhote, apareciam na sala. A interação entre elas emana uma energia animada e confusa, a mesma que faz parte da personalidade da drag queen. 

Parecia que a Halley estava por ali também, presente nos cabelos coloridos de Aline, que quase se misturavam com as paredes que mais pareciam uma explosão de cores, e nas tatuagens de cor intensa que ela possui. Para Bruna também é notável como uma carrega um pouco da outra. “Se alguém falar alguma coisa, ela [Halley] já resolve, então eu acho que a confiança e esse trabalho artístico mudou muito. Acho que deu força [para a Aline], porque ela se sente bem fazendo, ajuda um pouco para quando ela está desmontada. Porque eu acho que a confiança sobe um pouco para ela, não fica tudo na Halley”. 

 

Prazer, subversão


Calça jeans, camiseta, roupas folgadas e tênis, é assim que Aline prefere estar vestida cotidianamente. O foco dela é sempre o conforto. Não é de hoje que ela prefere chinelos a saltos, cara limpa a maquiagem, unhas curtas as longas e enfeitadas, a liberdade de ser como quiser ao invés da imposição do feminino. “É legal a gente poder ter o momento de expressar isso [a feminilidade] e de usar não como uma obrigação, mas como um momento de diversão”. Com a Halley, paira sobre o ar a liberdade e o poder de escolha.

Ser insubordinada à imposição social da feminilidade é para Aline uma bandeira que ela levanta através das suas montagens, sem medo de retaliação. “Acho que a ideia central da drag é essa, não reproduzir e sim subverter”. Seu foco não é fazer uma caricatura, uma representação da figura feminina de maneira super estereotipada. Ela usa Halley como crítica ao papel feminino padrão, de maneira que a torne quase uma animação. “Eu quero que a Halley seja mais um evento, porque eu uso a drag como essa ferramenta de ser algo a mais, de trabalhar o papel feminino em suas possibilidades”.

Ao se descobrir como uma mulher lésbica, muitos pensamentos vieram à sua cabeça: “Eu gosto de meninas, mas será que eu não posso ser feminina? Eu tenho que negar essa imagem? [...] Se eu gosto de mulheres, eu tenho que reproduzir comportamentos masculinos?”. Mas, gostar de mulher não a faz menos mulher, e a Halley trouxe a confirmação de que ela não precisa ser homem para ser drag e muito menos precisa fazer drag king. “Eu gosto de ser drag queen mesmo, eu gosto de ser princesa, de ser heroína, de ser feminina”.  


Um meio de resistência


Por ser da comunidade LGBTQIAPN+, não se imagina que haja preconceitos contra as pessoas que também participam dela. Mas para contrariar essa suposição, as mulheres drag queens são discriminadas. “Dentro do meio drag as mulheres, por mais que tenham muita qualidade, não têm visibilidade. Se a gente pegar o Instagram e ver os seguidores, likes, curtidas de drags mulheres e drags homens, a diferença é gritante, ainda que a gente tenha a mesma qualidade, a mesma dedicação. E eu já ouvi coisas como ‘Mulher drag, é apropriação cultural’, mas a expressão artística não tem gênero, não tem cor, não tem sexo. É uma representação, é uma expressão”.

Nesse momento o clima da sala não era mais alegre e descontraído, a indignação de Aline parecia ser compartilhada por todas ali presentes, e de fato era. “Se o movimento drag queen é sobre a representação de uma figura feminina, por que mulheres não podem ser?”, questiona Aline de forma retórica. A solução para o problema, porém, pareceu ser algo simples para Bruna. “Eu acho que ela precisa vir para incomodar mesmo. Incomodar dentro da comunidade LGBTQIAPN+, incomodar fora, remexer as coisas. Acho que a drag queen tem esse papel, que é extremamente necessário”.

Esse incômodo não é apenas uma forma de provocar quem discorda da presença de mulheres no movimento drag queen, também é uma maneira de demonstrar força, de se mostrar como um símbolo político. Rindo, Aline lembra da performance realizada no dia do primeiro turno das eleições presidenciais do ano passado, que ela descreve como uma caótica noite de vermelho. “A gente sabe que a arte é uma arma de protesto, como ferramenta de informação. E a Halley foi uma ferramenta de protesto”.

Halley Star em uma de suas performances.(Foto: Arquivo Pessoal)


Talvez, ao primeiro olhar, não seja possível perceber que a drag é uma figura muito além de sua aparência extravagante. “Caótica, colorida e quem vê de fora vai se atrair ‘nossa que coisa fofa’ e aí ela vai lá te dá uma mordida”. A definição de Bruna sobre a personalidade de Halley foi no mínimo curiosa, mas fez jus. A persona de Aline certamente é uma figura marcante, por isso o questionamento que fica é: e o cometa, irá voltar? 

A sala banhada pela luz alaranjada de um fim de tarde foi o cenário perfeito para uma despedida. Mas diferente de nós, Halley Star não tem uma hora definida para ir embora. Ao contrário do cometa Halley que tem data para sua volta a cada 76 anos, a drag queen faz de sua aparição um evento inesperado, ela surge quando é necessário. Mesmo que faça algum tempo que Campo Grande não a vê, não se pode dizer que ela nunca mais irá retornar. “Por mais que atualmente eu não esteja me montando muito, sempre que surge a oportunidade eu faço. Porque tudo o que a gente faz porque gosta, não pensamos o quanto vai durar, e com a drag é o mesmo, não é algo que dê para medir”.

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1 commentaire


liviaf.freitas.lvf
15 déc. 2023

Adorei

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