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Crianças de terreiro

A iniciação de crianças em religião de matriz africana e o estigma da fé


Texto e Fotos: Glenda Rodrigues e Helder Carvalho


O som dos atabaques ainda está distante e abafado pelas construções da vizinhança, mas a percussão vai ganhando força a cada passo dado em direção ao barracão do fundo do quintal. A vontade de dançar entra pela pele com a vibração do ar, e as batidas do coração sincronizam com a do batuque. Pláqui, plácundum, táqui, tácum, durugudum. Famílias com filhos pequenos lotam o terreiro de umbanda. Era 07 de outubro. Muitos doces, fitas e balões rosas e azuis anunciam: a Festa de São Cosme e Damião começou!



Dona Vilma Leda de Savio Moreira, Ialorixá - ou Mãe de Santo - dirigente do terreiro Templo de Umbanda Fé, Amor e Caridade (TUFAC), inicia os trabalhos incorporando a Cabocla Jurema. Na sequência, os demais médiuns, quase todos vestidos de branco, incorporam seus guias – também chamados de entidades - seguindo a hierarquia definida pela antiguidade na casa. Os últimos incorporam os Erês, guias com trejeitos de crianças, fala meiga, brincalhões, que gostam de balas, refrigerante, bolo, brinquedos, e estão sempre a postos com as mãozinhas juntas para pedirem “bença” ao adulto que estiver mais próximo.



Em dias ordinários, o terreiro é dividido por um biombo baixo de madeira, separando os médiuns em trabalho espiritual da população assistida. Nesse dia de festa, o biombo é retirado e as crianças e adolescentes transitam livremente depois que todos os médiuns adultos incorporaram seus guias. O trânsito entre as salas, cozinha e a mesa de doces não para. Alguns médiuns incorporados em caboclos, guias adultos, passam por processo de desincorporação e incorporam novamente, dessa vez em guias Erês. São corpos adultos sendo guiados por espíritos infantis, tão brincalhões quanto as crianças que correm de um lado para o outro do barracão.

A festa começou serena, com as rezas da Mãe Vilma direcionadas ao altar de santos. Rodeada de muitos outros médiuns e ao som dos atabaques, a Ialorixá deu início à gira da umbanda e à intensificação dos movimentos das pessoas e potência das falas e cânticos. Rodas de brincadeiras são formadas, e o chão branco do terreiro passa a ter o melaço do açúcar respingado. A fala das crianças torna-se efusiva e os sorrisos são ouvidos a todo momento. No meio de um aparente caos, dominam a leveza da energia pelo ambiente e o clima de celebração por São Cosme e Damião.



Se no TUFAC, localizado no bairro Vila Bandeirante da capital sul-mato-grossense, a atmosfera de festa está envolta em fé e espiritualidade, fora do terreiro o que se sente é preconceito com essa religião de matriz africana. De forma jocosa, os umbandistas se chamam de macumbeiros, mas normalmente são assim chamados pejorativamente por quem não conhece seus preceitos – como se trabalhassem para fazer o mal aos outros.

O Censo Demográfico 2022 não contemplou a análise de religiões praticadas no Brasil, mas uma projeção feita por Bernardo Mello e Natália Portinari para o Jornal O Globo, em matéria publicada em 18/09/2022, estima que católicos e evangélicos representam 81,7% do panorama religioso no país, com base na análise do número de CNPJs relativos a templos em atividade. Portanto, a maioria da população brasileira é declaradamente cristã. O mundo para além do catolicismo e do evangelismo não é rigorosamente estudado, compreendido e, em diversos casos, sequer tolerado, de modo que expressar publicamente a religião sem raízes católico-evangélicas passa a ser motivo de vergonha ou medo.

Não é raro encontrar umbandista que se declara espírita para não sofrer os estigmas presentes especialmente nas religiões de matriz africana no Brasil. De outro lado, diversos umbandistas falam abertamente sobre o orgulho de sua expressão de fé e desejam que seus filhos sigam esse caminho de espiritualidade.


A iniciação na Umbanda e no Candomblé


Apesar de guardarem muitos mistérios e segredos, difundidos apenas aos praticantes de cada templo, as duas maiores religiões de matriz africana no Brasil – Umbanda e Candomblé – possuem rituais de iniciação com características que podem ser tratadas abertamente. A Umbanda tem uma liturgia de simplicidade - característica que lhe é marcante - durando apenas um único dia. A iniciação no Candomblé se estende por vários dias, às vezes sendo necessário raspar a cabeça e utilizar indumentária religiosa durante os três meses seguintes, ou utilizá-la pelo resto da vida. Portanto, no caso da Umbanda, ao contrário do Candomblé, não ocorre uma mudança corporal ou de vestimentas que necessite ser compartilhada nos meios sociais diversos dos terreiros.





Mesmo atravessando um dia com forte onda de calor que assola Campo Grande-MS, Pai Juan de Xangô, dirigente da Casa de Caridade Dona Tida, no bairro Jardim TV Morena, apresenta-se com a indumentária candomblecista: camisa e calça comprida brancas e torso – ou pano de cabeça – laranja. Iniciado na Umbanda e no Candomblé, membro do Conselho Municipal dos Direitos do Negro e estudante do 7º período de Direito, o sacerdote detalha os ritos de iniciação nas duas religiões de matriz africana.

- O rito iniciático tanto para adultos quanto para criança é o mesmo. E normalmente as iniciação são feitas nas que nascem dentro do axé. A gente procede nos primeiros dias, no primeiro mês, o batismo. Depois do batismo, a gente tem um ritual chamado Amassi.

Esse ritual é um banho de ervas que representa a coroação e iniciação da criança dentro do culto, identificando a divindade e energia à que a criança pertence.

- A partir daí começa a trajetória espiritual dela.

Se a iniciação da criança não é feita desde os primeiros momentos de vida, ocorrendo quando ela já está inserida na escola, é comum chegar ao terreiro com uma visão estereotipada, formada a partir de comentários de colegas de escola que possuem base judaico-cristão sobre a religião. Segundo Pai Juan os estereótipos mais comuns são que a religião de matriz africana é do diabo, que Deus não está no terreiro. Inclusive, Pai Juan afirma que já teve uma época de afirmarem que a Umbanda e o Candomblé matavam crianças. Alguns colegas de escola também sabem detalhes do rito iniciático, como a raspagem de cabelo, e falam com um tom de terror e distorção do rito:

- Vai arrancar seu cabelo - Pai Juan observa que os barulhos e as músicas de terreiro, além de quebrarem a visão estereotipada da liturgia, encantam as crianças.

O racismo, ainda que estrutural, é desenvolvido aos nove ou 10 anos, segundo as experiências que o sacerdote teve ao longo de sua história de vida entremeada às duas religiões.



No ventre de um terreiro com paredes pintadas de azul, onde o sagrado dança entre os orixás, encontramos Gabriel Pereira Garcia, conhecido como Babakekerê ou pai pequeno do terreiro Axé Nascente, localizado no Bairro Carandá Bosque, em Campo Grande-MS. Vestindo roupas de rendas brancas, destaca-se como um homem branco envolto na espiritualidade afro-brasileira. Gabriel compartilha a complexidade e a beleza da iniciação de crianças no Candomblé. No interior desse espaço, duas crianças já foram iniciadas, enquanto outras estão em processo de abianato e abiã. Gabriel ressalta a importância da organização diferenciada para as crianças, não apenas por uma necessidade ritualística religiosa, mas porque o Candomblé é uma reconstrução, recomposição, reconstituição familiar.

- É um assunto muito delicado, afirma Gabriel, mas o interesse é que essa criança seja iniciada e que ela se sinta bem, pois é um processo longo, com vários rituais.

Ele destaca a necessidade de um vínculo profundo e forte durante esse processo, não apenas como uma exigência da liturgia, mas para garantir o bem-estar da criança.

- Ritualisticamente, acredito que não haja diferença entre a iniciação do adulto para criança", explica Gabriel. "Vai mais para os campos da subjetividade, pois uma criança vai ter mais uma necessidade." Ele ressalta a vitalidade e a energia características das crianças, tornando a questão do recolhimento uma jornada mais suave do que a de um adulto.

Gabriel compartilha sua própria experiência:

- Eu fiquei cerca de 13 dias quando me iniciei. Desses 13 dias, eu entrei no terreiro e só saí no décimo terceiro. E dentro da clausura que chamamos de roncó, útero, lá fiquei sete dias. Ele descreve a feitura de santo como um renascimento simbólico, uma transformação que transcende a pele fenotípica.

- A iniciação simboliza isso, diz ele, "passa por vários momentos que cada componente do universo passa por você." Gabriel enfatiza a modulação entre o espiritual e o físico, representada por elementos como raio, água doce, fogo, frio, que se entrelaçam durante a iniciação.

Para as crianças, o período de iniciação é semelhante, respeitando o tempo mínimo necessário para a execução dos rituais. No entanto, Gabriel destaca que não há uma regra fixa, pois consultam os oráculos, como o jogo de búzios, para determinar a duração e verificar se todos os rituais foram encantados. É uma jornada mística, em que cada passo é guiado pela tradição, pela espiritualidade e pelo profundo respeito à individualidade de cada iniciado no caminho do Candomblé. O Ventre Azul do Axé Nascente revela-se como um espaço onde a espiritualidade transcende as barreiras físicas e temporais, guiando as crianças em sua jornada de renascimento no Candomblé.


As experiências de adultos com a iniciação infantil na Umbanda


Vestindo branco – uma saia longa rodada e uma blusa – e um sorriso grande no rosto, Mariah, sacerdotisa do Templo de Umbanda Fé, Amor e Caridade (TUFAC), conta sobre seu caminho religioso. Ela iniciou na Umbanda, mas passou a frequentar cultos evangélicos por orientação de sua avó, retornando à religião inicial posteriormente. Mariah transmitiu a sua fé a sua filha mais velha, ao genro e ao filho dele.

– Quando começa pequeno, é melhor ainda, eles levam a sério o desenvolvimento. Tem crianças que fazem assistência e devem ser controladas, pois já têm a entidade ali. Posso falar da minha filha. Antes de ela entrar, de ela ser iniciada, de ela girar a primeira vez, ela era uma adolescente. Depois disso, mudou completamente. Depois que ela começou a firmar as entidades dela, foi crescendo na religião, na espiritualidade, ela mudou. Com 15 anos, ela começou e com 16 (anos) as entidades dela chegaram. A Mãe (Vilma) pede esse tempo para que todos tenham 16 anos. Só quando não tem como segurar a espiritualidade, aí é outro caso, aí tem que deixar vir”.

A sacerdotisa compara a Umbanda a qualquer outra religião, afirmando que, quando se busca desenvolver a espiritualidade, se busca Deus, a sua vida muda para melhor, assim como ocorreu com a sua filha.

Danilo, um dos atabaqueiros da Festa de São Cosme e Damião, lembra de sua base religiosa formada pela avó umbandista, trajetória que hoje repassa à esposa e aos filhos, presentes na festa. Seus filhos apresentam mediunidade aflorada e, segundo ele, têm um pouco de medo de frequentarem o centro, mas entende que cada um tem seu momento certo para manifestações espirituais e deixa em aberto a escolha religiosa para seus filhos. Ele também entende que há um momento certo para incorporação de espíritos, devendo haver um cuidado maior com crianças.

Candomblé: crianças expressam sua religiosidade


Um cavalete da Agência Municipal de Transporte e Trânsito de Campo Grande-MS (Agetran) fecha a entrada de uma rua no Bairro Pioneiros. Mesas e cadeiras, e o ir e vir de pessoas levando formas com assados, carregando indumentárias e também diversos acessórios de festas, unem um lado ao outro daquela via. Duas residências de candomblecistas vizinhos fazem frente com o terreiro de Candomblé Ilé Oya Orírí Àse Aladó.

Era data de uma grande festa. Na noite de 21 de outubro, a Ialorixá - ou Mãe de Santo - Nair de Oyá celebrou seus 21 anos de iniciação no Candomblé. Nessa religião, a celebração tem o nome de obrigação, consistente em uma cerimônia realizada por uma pessoa iniciada – portanto, após a sua feitura – em reverência ao orixá que a guia.

As diversas raízes e costumes do Candomblé e da Umbanda, passadas de geração em geração de forma majoritariamente falada e informal, criam uma base a ser seguida, porém uma heterogeneidade em seus ritos: os terreiros carregam peculiaridades na estética (vestimentas e barracão) e nas suas liturgias (cantos e rituais). A Umbanda finca raízes em três prováveis origens: no Rio de Janeiro, através de Zélio Fernandino de Moraes, no espiritismo segundo Alan Kardec e na Bahia, com o conhecimento difundido pelos escravos africanos trazidos ao Brasil. O Candomblé é dividido em nações, dentre as quais Congo, Nagô, Angola, Ijexá, Jeje e Kêtu. A obrigação também representa maturidade e crescimento no terreiro e seus períodos para cumpri-la dependem da origem de nação do Candomblé praticado pelo filho de santo.

Nas mesas e cadeiras que preenchem a rua em frente ao terreiro, muitos convidados vindos de outras casas da cidade e até de outros estados, como São Paulo. O entorno, em pouco tempo, ficou tomado pelos carros. Os vizinhos do terreiro levavam suas vidas normais, em mais uma noite de muito calor em Campo Grande-MS: cadeiras de fio se espalhavam nas calçadas, trazendo um pouco de ar fresco que dentro de casa era impossível sentir.

Na porta do barracão, oferendas. No canteiro vivo da entrada, várias plantas e pequenas árvores, tendo aos pés a cachaça, simbolizando o elemento água. Dentre alguns ensinamentos que se aprendem logo que se entra num terreiro de Candomblé, há o simbolismo de orixás por meio das árvores e das plantas ali presentes, que, portanto, são tidas como sagradas. Além disso, todo terreiro de Candomblé possui elementos da natureza: o ar, o fogo, a água e a terra. O ar é muitas vezes simbolizado pelas bandeirinhas posicionadas por todo o teto do barracão. Ao serem ventiladas, as bandeiras criam ondas que remetem à presença do ar naquela casa. O fogo está presente de forma literal, por meio de chama de velas, ou fogueiras, assim como a terra, nos jardins e canteiros. A água também pode ser literal, como fontes, poços, bicas, ou mesmo de forma simbólica, a exemplo da cachaça.

À esquerda da entrada do barracão, mulheres aceleram a produção das refeições em dois fogões. Não são quaisquer alimentos, pois considerados divinos e cujas receitas são guardadas a sete chaves pelas Iabassês, responsáveis pelo seu preparo. As Iabassês são consagradas para exercerem essa função. A feitura dos alimentos não pode ser registrada, sob pena de se violar uma regra da própria crença.

Uma fila de candomblecistas da casa se forma, puxada pelos mais antigos levando oferendas e entoando cânticos que penetram a pele: era hora dos convidados levantarem de suas mesas e entrarem no barracão, pois a celebração estava para começar.




Um corredor estreito e de teto baixo liga a entrada ao espaço da cerimônia, que ficou lotado. Era difícil romper o mar de gente para ver o que acontecia lá dentro. Entre um pedido de licença e outro, a visão se abriu e a conclusão era óbvia: o Candomblé é lindo. É única a riqueza de detalhes das roupas, panos e torsos coloridos ou alvos.



O piso de cimento queimado cinza faz contraste com o teto branco tomado pelas bandeirinhas. Ao fundo, posicionam-se os três atabaques consagrados do Candomblé – Rum, Rumpi e Lê - acessados somente por homens imbuídos da missão de tocá-los. Nos lados esquerdo e direito do Rum, Rumpi e Lê, cadeiras enfeitadas para os membros da casa e para os convidados especiais, dentre eles Ana D’Ogun, Mãe de Santo do terreiro Ilê Axé Oju Onirê, localizado em Taboão da Serra, interior de São Paulo. Mãe Ana é considerada uma das matriarcas mais antigas do Candomblé no Brasil, tendo sido iniciada na religião em 1960.



Na presença dela, o início da vida carnal e espiritual. Muitas crianças e adolescentes, já iniciadas no Candomblé, celebram aquele momento, vestindo suas indumentárias e expressando sua fé e espiritualidade por meio da dança e dos cânticos. Uma roda formada por meninas e mulheres, evocando os 16 orixás cultuados na casa, materializa o Xirê dos Orixás. Elas se movimentam como se fossem navegando em ondas calmas. Também fecham os olhos e usam seus braços um pouco flexionados à frente para expressarem corporalmente o ritmo da música.



A Ialorixá – ou Mãe de Santo – Nair de Oyá estava recolhida, como parte do ritual da obrigação no Candomblé. Somente iria ser vista em público mais tarde, com a entoação do canto à Iemanjá, a orixá que a guia. Perto dos atabaques estava o trono da Ialorixá Nair, que foi ocupado por ela tão logo entrou no barracão e cumprimentou os presentes.

O Xirê continuou, dessa vez com os homens e mulheres em posição hierárquica superior, puxados pela Mãe de Santo Nair, e as incorporações se iniciaram. Por isso, o som dos atabaques parou e um aviso foi dito aos presentes: a partir de agora é proibido filmar e fotografar. Por favor, guardem suas câmeras e celulares. A presença do Orixás em seus médiuns é um momento sagrado, cujo registro imagético é proibido na maioria das casas.





A experiência da iniciação no Candomblé na idade escolar


Iniciada aos onze anos, quando era estudante de uma escola adventista, Lívia, hoje com 22 anos, é Oyá do terreiro de Candomblé Axé Nascente, em Campo Grande-MS.

Assim como todos os Abiãs que entram em transe, precisou raspar sua cabeça durante sua iniciação - ou “feitura”. No ritual e logo depois dele, usa-se roupa branca, que simboliza o estado cru, semelhante ao de um bebê que nasce e precisa se resguardar. Ela recebeu o apoio das amigas na escola, mas viu dificuldade de compreensão por parte dos meninos. Ao longo de três meses após iniciada, não pôde andar com a cabeça exposta, daí porque usou lenço de cabeça - ou torso/torço.

- Eles pegavam meu lenço, saíam correndo, eu não podia ir atrás, porque como eu ia colocar minha cabeça no tempo? Faziam piadinha, me chamavam de menino, zoavam a minha religião.

Antes de ser iniciada, seus pais compareceram ao colégio em que estudava e explicaram sobre o Candomblé, a iniciação pela qual passaria, o motivo de ficar um tempo afastada da escola e que, quando voltasse, estaria sem o cabelo. O objetivo dessa conversa anterior à feitura era inserir os adultos nos conhecimentos da religião e permiti-los estimular os colegas de escola a tolerarem as diferenças.

A sorridente Isabela Marques, 11 anos, participou do Xirê de Orixás na celebração de 21 anos de Candomblé de Mãe Nair. Isabela foi iniciada na mesma religião aos três anos. Apesar da pouca idade à época, disse que levava uma vida normal, indo para a escola. Alguns colegas, porém, associam a sua religião a “fazer coisa ruim”, mas tem o respeito da maioria deles.





Enquanto estava no ventre de sua mãe Maryellen Guedes, a pequena Kauene, hoje com nove anos, passou por diversas complicações. Em razão da gravidez de risco e apoiada nas crenças candomblecistas ensinadas pelo tio, Maryellen dedicou sua filha ao Candomblé desde antes do nascimento, conseguindo a graça de lhe salvar a vida. Quando Kauene completou seis anos, foi iniciada na crença e hoje exerce a função de Iaô. Muitos lhe questionam a decisão de inserir a filha na religião de matriz africana, mas ela é convicta das razões que a motivaram a tomar essa decisão e do amor sentido pelo Candomblé.

Maryellen teve receio da recepção que Kauene teria na escola, por conta do preconceito e do bullying que sua filha poderia sofrer pela raspagem dos cabelos, mas a experiência foi positiva, com respeito estimulado pela direção da escola.


- Se o Candomblé fez bem para mim e para o meu marido, que também é iniciado, porque não para os nossos filhos?

Com esse questionamento, Beatriz Souza, Iabassê do terreiro de Candomblé Ile Sola Iya Omi Legbe Ita Ode - localizado no bairro Estrela do Sul, região norte da Cidade Morena - e mãe de Marina, que põe sentada em seu colo, inicia uma análise sobre o estigma da iniciação de crianças em religião de matriz africana.

- Seu filho nasce e, se você é católico, você batiza seu filho. Se você é evangélico, apresenta na igreja. Por que no candomblé nós não podemos iniciar nossas crianças? - declarou Beatriz.

A Iabassê entende que, se a prática religiosa faz bem para si, deve passar para a sua filha e não apenas esperar que ela atinja uma certa idade para escolher, desde que ela seja devidamente encaminhada.




Assim como nas diversas outras manifestações de fé e espiritualidade, a presença de família com filhos menores de idade é uma constante. As religiões de matriz africanas não são assunto para adultos, mas um tema que atinge toda a sociedade, porque necessitam de estudo e estímulo à compreensão das diferenças e à tolerância religiosa, desde a primeira infância até atingir os idosos. A riqueza da pluralidade da fé e a garantia da liberdade religiosa são marcas do povo brasileiro e permitem a busca pelo Divino em religiões das mais variadas matrizes, não apenas por meio das cristãs.

Assim como é permanente a busca por proporcionar aos filhos menores de idade as melhores experiências de vida durante sua formação, respeitadas as próprias limitações, as famílias de terreiro encontraram uma experiência de fé que lhes faz sentido e desejam passar essa boa vivência aos filhos de axé. O estigma da fé é um empecilho comumente praticado em escolas e em alguns órgãos públicos, que, em vez de tutelarem os direitos de crianças iniciadas em religião de matriz africana, estimulam o ódio e a intolerância religiosa.

Candomblé: o sagrado culto afro-brasileiro


No universo místico do Candomblé, as palavras da Ialorixá Mãe Solange de Iemanjá, mulher negra e de cabelos negros ecoam como sussurros ancestrais, desvendando os rituais complexos e as nuances das tradições afro-brasileiras. Para ela, o Candomblé é mais que uma religião; é a expressão viva da conexão entre os terreiros e as forças divinas.

Mãe Solange destaca a importância dos atabaques, instrumentos sagrados que não são simples peças comerciais, mas sim objetos consagrados. Aqueles que não foram iniciados não podem tocá-los, evidenciando o respeito profundo que os praticantes devem ter por esses elementos rituais.

O toque inicial dos atabaques não é apenas uma melodia; é uma saudação, um chamado para que os filhos de Santo entrem na roda. O Candomblé, segundo a Ialorixá, é uma dança espiritual em que a reverência aos orixás é central. Exu, o mensageiro, é homenageado inicialmente, seguido pelos demais, cada um em sua ordem hierárquica.

O ritual se desenrola conforme a hierarquia dos orixás, desde Ogum até Xangô, cada um recebendo homenagens e cantigas específicas. Mãe Solange destaca a diversidade, ressaltando que cada festa, cada evento, segue um ritual distinto. Não há generalizações; a tradição é preservada com zelo.

A Ialorixá destaca a riqueza da história do Candomblé no Brasil, resultado da miscigenação de diferentes tradições africanas. Ela enfatiza que, mesmo cultuando 16 orixás, a matriz africana possui uma diversidade muito maior. O conhecimento é a folha, a base da prática, e ela alerta sobre a importância de seguir a tradição para não distorcer a essência do culto.

A jornada de Mãe Solange revela as particularidades de sua casa, Ilê Olá, em São Paulo, e como o Candomblé é vivo e moldado por cada pai de Santo. Ela compartilha suas experiências entre as nações Queto e Angola, destacando que a tradição é seguida, mas pequenas variações são permitidas, como uma pimentinha a mais em um prato tradicional.

A voz da Ialorixá Mãe Solange de Iemanjá é um convite para adentrar nos mistérios do Candomblé, onde as tradições ancestrais se entrelaçam com a diversidade brasileira, formando um tecido sagrado que conecta passado e presente. O Candomblé, para ela, é uma celebração da diversidade, da herança africana, e um caminho espiritual que se renova a cada toque dos sagrados atabaques.


Os direitos dos menores de idade


A Constituição Federal, que é o parâmetro para todas as demais normas do país, garante a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias (artigo 5º, inciso VI). Além disso, a Carta Maior determina que o Estado proteja as manifestações culturais afro-brasileiras e de todos os demais grupos participantes do processo civilizatório nacional (artigo 215, parágrafo 1º).

Na escola, a Lei nº 9.394/1996 estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Ela foi inicialmente alterada pela Lei nº 9.475/1997, que assegura no ensino fundamental o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil. Posteriormente, a Lei nº 10.639/2003 fez nova modificação na Lei nº 9.394/1996, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Cinco anos depois, uma nova alteração, desta vez estabelecida pela Lei nº 11.645/2008, determinou a inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, nome popular da Lei nº 8.069/1990, prevê, em seu artigo 22, parágrafo único, que mãe, pai ou responsável por menores de idade têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro orienta, por meio de cartilha de sua autoria, que os terreiros tenham um documento assinado pelos tutores para se resguardarem quando da iniciação de crianças e adolescentes nos cultos afro-brasileiros.


GLOSSÁRIO


Atabaques: é um instrumento musical que chegou ao Brasil através dos escravos africanos, é usado em quase todo ritual afro-brasileiro, típico do Candomblé e da Umbanda e das outras religiões afro-brasileiras e influenciados pela tradição africana. De uso tradicional na música ritual e religiosa, empregados para convocar os orixás, inquices e Voduns.

Barracão: Barracão de um candomblé é o espaço onde são realizadas as festas públicas.Também conhecido como Ilê Axé, é o local sagrado para o povo do santo, onde acontecem as festas públicas, e pode abrigar uma grande parte dos convidados. No local central (sob o solo) estão fixados, "plantados" os fundamentos do orixá da Terra. Todos os adeptos reverenciam seus orixás e ancestrais em sinal de respeito e amor.

Xirê: É uma palavra iorubá que significa roda, ou dança utilizada para evocação dos Orixás conforme cada nação.

Terreiro: É o local onde se realizam os cultos cerimoniais e as oferendas aos orixás.

Ialorixá- Mãe de santo: Ialorixá ou iyalorixá, também conhecida como mãe de santo e mãe de terreiro, é a sacerdotisa de um terreiro, seja ele de Candomblé, Umbanda ou Quimbanda.

Cabocla Jurema: Cabocla Jurema é uma falange espiritual cultuada em religiões de matriz africana, como umbanda e o candomblé de caboclo — em sincretismo com rituais de ramificações religiosas, como o animismo dos povos indígenas do Brasil, sobretudo no catimbó, onde estão ramificados os rituais de pajelança e no toré.

Entidades: espíritos desencarnados de ancestrais que podem ser incorporados por médiuns durante os cultos nos terreiros de umbanda. Essas entidades, que cumprem funções ligadas à cura e ao aconselhamento, podem ser descritas como tipos populares pertencentes à realidade social brasileira.

Gira ou Jira: Gira ou Jira(no idioma quimbundo, nijra, caminho). na Umbanda, é a reunião, o agrupamento de vários espíritos de uma determinada categoria, que se manifestam através da incorporação nos médiuns. A gira pode ser festiva, de trabalho ou de treinamento.

Sincretismo: Fusão de diferentes cultos ou doutrinas religiosas, com reinterpretação de seus elementos.

ORIXÁS: Orixás são deuses cultuados pelas muitas crenças africanas, sendo ligados à família e aos clãs. No Brasil, são cultuados os seguintes orixás: Exú, Ogum,

Omulu, Xapanã ou Abaluaiê, Xangô, Yasan, Oxossi, Nanã, Yemanjá, Oxum, Oxumarê, Ossain e Oxalá. Os orixás detêm axés vinculados à natureza.

YEMANJÁ: Iemanjá é um orixá (divindade africana) feminino das religiões Candomblé e Umbanda. O seu nome tem origem nos termos do idioma Iorubá (língua nige-

ro-congolesa) “Yèyé omo ejá”, que significa “mãe cujos filhos são como peixes”. É considerada a mãe de todos os adultos e a mãe dos orixás.

Torço ou pano de cabeça: O Ojá, como é conhecido na África, ou torço como é chamado nas religiões de matriz africana, e ainda turbante, o nome mais popular no Brasil, é o responsável por proteger o orí (cabeça) de quem o usa. É também um dos símbolos da roupa de baiana.

Ori: palavra da língua iorubá que significa literalmente cabeça, refere-se a uma intuição espiritual e destino.

Amassi ou Amaci: é um banho de ervas maceradas que deve ser preparado pelo dirigente da casa

Abionato ou Abiã: Abiãé toda pessoa que entra para a religião do candomblé, sendo também chamado de filho de santo, após ter passado pelo ritual de lavagem de fio de contas e o bori. Poderá ser iniciada ou não, vai depender de o orixá pedir a iniciação. Só deixará de ser abiã quando for iniciada, passando a ser, então, um iaô.

Iabassê: é a responsável pelo preparo dos alimentos sagrados no candomblé. Todos os iniciados podem auxiliá-la, sendo ela a responsável por qualquer falha eventual. Ela deve estar em todos os eventos do terreiro, já que é ela quem prepara toda a comida sagrada.

Ekedi:Equede (em iorubá: ekedi), ajoiê e macota (makota)[3] são nomes dados de acordo com a nação do candomblé para um cargo feminino de grande valor: a de "zeladora dos orixás". É o equivalente feminino dos ogãs, sendo escolhida e confirmada pelo orixá do terreiro de candomblé. Não entram em transe.

Xirê: Xirê é uma palavra iorubá que significa roda, ou dança utilizada para evocação dos Orixás conforme cada nação.

IAÔ: Iaô (em iorubá: Ìyàwó) é como são designados os filhos de santo que já passaram pela iniciação no candomblé e no batuque, popularmente conhecida como "feitura de santo", mas que ainda não completaram o período de 7 anos após a iniciação.

Macumba: Macumba é um instrumento de percussão de origem africana, semelhante ao instrumento reco-reco. No Brasil, por meio de um processo de ampliação de sentido, o termo "macumba" passou a referir também, de forma pejorativa, às oferendas religiosas ligadas às religiões de matrizes africanas.

Erê: Erê é, no candomblé, o intermediário entre a pessoa e o seu Orixá. É por meio do Erê que o Orixá expressa sua vontade, que o noviço aprende as coisas fundamentais do candomblé, como as danças e os ritos específicos de seu Orixá. A palavra erê vem do iorubá, erê, que significa "brincar".

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