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Das ruas às rimas

A falta de visibilidade da cultura hip-hop no MS


Texto e imagens: Mariana Pesquero


Grafite, hip-hop, rap, street dance, funk. Nascida e desenvolvida nos contextos urbanos, a cultura de rua representa mais que uma manifestação artística - se expande a uma reivindicação social. Na capital de um dos estados mais agrários e conservadores do país, suas obras têm baixa divulgação, reconhecimento e valorização, criando um contexto de preconceito e descrédito.

A segregação racial e a desigualdade social geraram, ao longo dos anos, o contexto do surgimento da cultura de rua, que cresce como forma de resistência cultural. Na periferia de Nova Iorque, no início dos anos 1970, o grafite deu início ao despertar desse movimento quando trens e muros foram marcados pela arte. Mais tarde, a dança de rua daria origem ao movimento hip hop, ao street dance e suas ramificações. No Brasil, o grafite chegou junto com o fim da década de 1970, como forma de protesto contra a Ditadura Militar e toda a opressão que ela simbolizava. Rio de Janeiro e Belo Horizonte também se destacaram no nascimento da cultura de rua brasileira, mas foi São Paulo o seu epicentro, o que lhe garantiu, até hoje, o título de capital da Arte Urbana.

No Mato Grosso do Sul, um estado que, na época, era ainda recente em desenvolvimento, as raízes agrárias se ligavam diretamente aos costumes e hábitos da população. Até hoje, a herança do sertanejo está atrelada predominantemente à cultura do estado, muitas vezes de forma estereotipada. Pouco a pouco, outras vertentes artísticas vão crescendo e ganhando destaque, quebrando essa ideia implantada e dando visibilidade a outros artistas locais que estão fora do mundo do sertanejo.


Uma criatividade que vem da necessidade


Raissa Souza Carvalho, conhecida no meio artístico por SoulRa, é cantora, rapper, compositora, estilista, produtora cultural, artesã e ativista. Nascida e criada em Dourados, a 230 km da capital sul-mato-grossense, Soulra adentrou o mundo do hip-hop quando terminava sua graduação em Direito, em 2018. Hoje, aos 28 anos, se dedica profissionalmente à cultura e à arte, sendo idealizadora do Baile da SoulRa, evento que reúne arte, música, moda e representatividade, com a participação de diversos artistas do universo underground. SoulRa conta que seu primeiro contato com o rap foi ainda quando adolescente. A jovem já cantava, mas em outro estilo: na igreja que frequentava. “Eu jogava basquete na rua e a gente curtia bastante o rap junto com o basquete. Uma cena do skateboard que era muito rap com o rock; e era isso que eu consumia na minha adolescência. Depois eu comecei a colar nesses eventos de rua para assistir. Enquanto ouvinte, eu sempre curti. Mas na época eu cantava na igreja, cantava outras coisas.”


Sua relação com a cultura de rua se baseia na identificação. “Quando eu ouvi músicas que falavam sobre a periferia, a negritude e tudo que eu via na minha história, eu me identifiquei, me apaixonei com a naturalidade de poder falar o que se pensa sem ter medo de censura, sem ter que se enquadrar nos moldes da indústria.” Foi então, durante seu último ano de graduação em Direito, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), enquanto estava em Portugal para a apresentação em um congresso internacional, que Raissa compreendeu que a arte ocuparia um espaço muito maior em sua vida. “Eu peguei o violão na casa das pessoas onde eu estava me hospedando e fiz um som, e essas pessoas ficaram apaixonadas. Falaram, ‘cara, o que você tá fazendo na sua vida? Você é uma artista!’ E só aí que eu consegui pensar na arte como profissão”, relata a jovem.


A pressão de uma sociedade que cobra a garantia de uma estabilidade financeira muitas vezes impede o avanço de profissões não tradicionais, e descredibiliza aquilo que não é convencional. A arte é tida como recreação, e, enquanto trabalho, entendida como inalcançável a quem não tem uma boa estrutura financeira disponível para investimento, lógica que mantém abastecido o ciclo elitista da “arte erudita”. Com o hip hop é diferente. A cultura de rua é expressão artística marginal, e por isso é tão importante - e tão silenciada. Os artistas urbanos tiram arte, música e dança de onde há menos recursos, trazendo à tona realidades que as classes sociais mais altas não querem que estejam à vista. Nas palavras de SoulRa, “às vezes a pessoa está numa realidade de violência, de vulnerabilidade, falta estrutura dentro de casa, e ainda assim consegue canalizar toda a luta em arte, em uma mensagem que dá força pra ela e para outras pessoas. Porque quando você não tem recurso você tem que ser criativo, então eu acredito muito que a criatividade que vem da necessidade torna o artista da rua muito mais genial, tá ligado?”


“O preconceito também mascara a ignorância”


O professor do curso de Letras da UFMS, Dário Neto, pensa de forma semelhante. Dário é mestre e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e, atualmente, coordena o grupo de pesquisa “Poéticas do rap” na UFMS. Sua aproximação com a cultura hip-hop se deu quando ainda estava se graduando na USP, onde fez parte do Núcleo de Consciência Negra e iniciou seu envolvimento com a luta negra, ambiente onde rap e militância andam de mãos dadas. Mas, foi depois de terminar seu doutorado que o professor enxergou a possibilidade de desenvolver pesquisa em poesia no rap. “Eu criei uma disciplina lá no campus da UFMS do Pantanal (CPan), em Corumbá, chamada Poética do Rap. Eu convidei os rappers de lá para participar, eles foram, e algo que aconteceu, por exemplo, foi dois rappers irem me perguntar quanto custava estudar na UFMS. Quer dizer, as pessoas periféricas às vezes nem conseguem entender a ideia de público… eles olham e falam ‘não é pra mim’”. Com isso em mente, Dário criou uma Oficina Poética de Literatura Hip-Hop, que aconteceu nos dias 28, 29 e 30 de setembro de 2023, dentro do campus da UFMS em Campo Grande. A oficina contou com três aulas, uma em cada dia, sobre a literatura dentro do rap, do funk e do hip-hop, seguidas por atrações performadas por estudantes da universidade e membros da comunidade externa, tendo batalhas de rima, apresentações de grupos de rap, breaking e DJs.



No decorrer da oficina, duas coisas ficaram muito claras: a paixão que todos ali têm pela arte e os laços afetivos criados através dela. A receptividade com que todos os presentes foram tratados, mesmo os que nunca tinham participado desse tipo de evento antes, tornaram o ambiente quase que familiar. Ali, todos eram irmãos. Durante as aulas, Dário era olhado com admiração e respeito, enquanto as apresentações dos artistas eram aplaudidas de pé e as batalhas de rima contavam com os gritos de toda a plateia.


Dário explica a diferença de sentido nas expressões cultura urbana e cultura de rua. “Prefiro falar cultura de rua. Porque, por exemplo, uma dança feita por uma determinada escola é chamada de cultura urbana, né? A cultura de rua não, a gente está falando de gente que está na marginalidade, e nesse sentido existe muito preconceito.” De acordo com o professor, dentro do próprio meio intelectual ainda existe muita desinformação, que se reflete no preconceito e na consequente dificuldade de identificar, no rap, elementos poéticos. “A gente tem um déficit educacional muito grande, inclusive no corpo docente. A formação poética brasileira não é boa, o preconceito também mascara a ignorância.” Dário afirma que muitos intelectuais se prendem a teóricos e pesquisas obsoletas, que não englobam a contemporaneidade e, por serem antigos, não conheceram o universo da cultura de rua. “É muito perceptível como gente formada em Letras não conhece o que é poesia, e aí o que faz é só repetir teóricos e continuar preso aos exemplos que esses teóricos trabalharam. Quem é da década de 50, por exemplo, não vivenciou o rap. Mas o papel do intelectual é atualizar isso”, acredita.



O professor considera ser papel dos docentes e da universidade contribuir no reconhecimento do ambiente acadêmico como um espaço que também é desse grupo marginalizado, para que, assim, possam se identificar com o lugar, democratizando a universidade. “Fazer esse tipo de atividade é entender que sim, isso é pra eles. Principalmente nós que somos professores, é a partir do nosso conhecimento técnico olhar para cultura de rua em suas múltiplas linguagens e perceber o potencial que existe. Acho que isso deveria ser uma prioridade.”


“Eles querem brecar a minha batalha”


Andrey Winicius tem 25 anos, é natural de Campo Grande, e escreve poesia há 10 anos. Estava presente no evento organizado pelo professor Dário, na UFMS. Para ele, o hip-hop mudou sua vida. “O hip hop foi uma porta radical que eu tive que entrar pra mudar de vida. Tem aquela poesia que eu recitei, eu estava preso quando lancei ela.” Mesmo consumindo o estilo há 15 anos, foi apenas há cinco deles que decidiu investir na arte, e aproveitou o evento para divulgar seu trabalho. Winicius relata que sempre quis estar dentro da UFMS, e quando Dário veio com a oportunidade de dar destaque ao seu dom, ele aceitou de imediato. “A minha poesia é só isso, está lá na rua, nas batalhas, então achei uma grande oportunidade para mostrar meu talento, minha arte.”



Quando questionado sobre a falta de visibilidade da cultura de rua na capital sul-mato-grossense, Winicius conta que acha projetos como o “Literatura hip-hop” extremamente importantes, e que o preconceito está presente até na polícia local. “Existe muito talento no anonimato, sabe? Muita gurizada aí tem rima, tem poesia, tem visão, tem vivência, é muito importante. Não sei se vocês sabem, mas a polícia oprime a gente quando a gente vai fazer essas coisas. A minha batalha mesmo, ela tá no olho da polícia, sabe? Eles querem brecar a minha batalha.” Winicius explica seu ponto de vista sobre a origem dessa visão negativa. “As pessoas têm esses preconceitos porque muitos dos que estão envolvidos na cultura de rua vão contra o sistema, então as pessoas já veem isso de uma forma errada. Para eles é um monte de gente que não tem nada pra fazer, mas pra nós não, muita gente tá de coração e alma.” Ele conta que mesmo tendo divulgação, ela não alcança espaços mais amplos, e as batalhas de rima acabam ficando limitadas às pessoas que já estão envolvidas nesse meio.


Mas a cultura urbana sul-mato-grossense alcançou, esse ano, repercussão nacional. No Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em novembro de 2023, uma questão da prova de Humanas abordou o tema reflexivo sobre a fusão das manifestações artísticas urbanas com a cultura indígena, utilizando como referência o grupo de rappers Brô Mc’s, de Dourados, MS. Bruno Veron, Clemerson Batista, Charlie Peixoto e Kelvin Mbaretê são os quatro integrantes, todos indígenas da etnia Guarani Kaiowá, das comunidades Jaguapiru e Bororó, em Dourados. Com 13 anos de carreira, os rappers, que mesclam o português e o guarani em suas letras, compõem o primeiro grupo de rap indígena do Brasil e o primeiro grupo a trazer elementos da cultura indígena para a música rap. Em 2022 se apresentaram no Rock In Rio e se tornaram o primeiro grupo de rap indígena a subir no palco do evento.


Arte no muro


Assim como as outras manifestações artísticas da cultura de rua, o graffiti nasceu da subversão ao sistema social, da necessidade de dar voz àqueles que não são ouvidos. Entre sprays, pincéis e tintas, paredes e muros ganham cor e significado, dando vida às cidades. Em 2011, um grande passo foi dado na busca por valorização pelos grafiteiros. A Lei n. 12.408 acrescentou um novo parágrafo no artigo 65 da Lei n. 9.605, datada de 1998. Nessa atualização, o graffiti foi descriminalizado. O parágrafo afirma que a prática de grafite como manifestação artística não é crime, desde que consentida pelo proprietário e esteja de acordo com as normas ditadas para a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional.



Na Cidade Morena, a nova lei nacional em vigor, Lei Paulo Gustavo, que se aplica especificamente aos setores artístico e cultural, possibilita aos artistas campo-grandenses o investimento em seu trabalho. Através de editais, dançarinos, músicos, artistas plásticos e visuais podem se inscrever e ter seus projetos selecionados. É o que explica Michael Douglas, artista plástico que há 10 anos expressa sua arte por meio do graffiti. “A gente se inscreve, mostra o nosso portfólio, a nossa proposta e aí tem a avaliação, todo mundo vê quem é, quem tem currículo bom e assim vai. E tem o dinheiro, o cachê, o investimento.” Apesar disso, Michael conta que ainda sente falta de investimento na cultura, e que apenas dois editais por ano não são capazes de suprir essa demanda.






O grafiteiro relata também que, em Campo Grande, enfrenta muita resistência em relação ao graffiti, inclusive vinda da própria Fundação de Cultura. “A gente devia ter um pouco mais de visibilidade, um pouco mais de valorização. É algo que a gente faz por amor, porque gosta, e às vezes, quando a gente precisa, não tem nenhum apoio.” Michael afirma que existem muitos artistas, grafiteiros, b-boys e b-girls na cidade, mas que não são vistos porque não têm o reconhecimento e estímulo que merecem.


No dia 21 de outubro, sábado, por volta das 9h da manhã, uma feira de ciências acontecia na Escola Professor João Cândido de Souza, no Jardim Anache, em Campo Grande. A professora de artes da escola, Erika Pedraza, que também é artista visual, escolheu o dia do evento para ser o mesmo dia em que ocorreria a pintura do muro da escola. A professora convidou grafiteiros e artistas plásticos para realizarem a arte ao mesmo tempo em que a feira de ciências estava a todo vapor, cheia de pais, alunos, professores e corpo docente. A temática retratada no muro foi escolhida pensando no contexto do bairro: por se tratar de uma região muito próxima à comunidade indígena Terena e muitos dos alunos da escola pertencerem a essa comunidade, a arte foi idealizada para retratar lideranças indígenas. Michael foi um dos convidados para dar vida ao muro da escola, e ficou responsável pela arte de Raoni, líder indígena brasileiro da etnia Caiapó e símbolo da resistência indígena e da Amazônia. O artista recebia, assim como todos os outros, olhares admirados, elogios e interrogações dos pequenos, que tiveram sua pequena, mas significativa, contribuição para a obra final.


Victor Macaulin também foi um dos responsáveis pelo desenho no muro da escola João Cândido. Formado em Artes Visuais pela UFMS em 2021, iniciou sua relação com as artes de rua em 2014, quando adentrou o movimento do rap e conheceu artistas do graffiti nas batalhas de rima. Victor explica que fazer graffiti é mais que uma prática comercial, significa ser parte do movimento. “O graffiti tem todo um contexto do hip-hop, da ocupação dos espaços. É uma arte efêmera, de subversão.” Ele conta que a diferença das grafias “grafite” e “grafitti” vai além de uma variação gramatical, tem um peso simbólico. “Tem o grafite que a mídia divulga, o grafite com “te”, é o que está na lei, pichação é crime e grafite é legal, se autorizado; E pra quem é do movimento, é graffiti com “ffiti”, que é o nome original de Nova York. O que a mídia divulga como “grafite” é a tradução, porque eles estão tentando embranquecer.” Victor afirma que o caso ortográfico pode soar como um detalhe, mas se trata de mais uma tentativa de embranquecimento de elementos da cultura negra. “É o que fazem com a cultura do povo negro, se apropriam e fazem esse embranquecimento, como o que fizeram com a capoeira, com o samba, com o funk”.


O artista também sente que a falta de valorização e investimento acompanham o movimento hip-hop. Sobre a questão dos editais, afirma que nem todo mundo tem acesso a esse tipo de informação. “Não tem essa de apoio não, é um ou outro, alguns vão começando a ter acesso à informação, fazem portfólio e correm atrás do que é um edital. Nem todos conseguem porque é um processo bem complexo de leitura, falta muito apoio para essa informação chegar, esse processo de mostrar como faz para se inscrever, participar, concorrer”, conclui. Nessa perspectiva, formou-se então, em 2022, o Colegiado de Cultura hip-hop, que foi montado em busca de ter uma voz dentro dos projetos culturais de Campo Grande e se organiza para participar das reuniões dentro da Fundação de Cultura. Com direito a voto, o colegiado ganha visibilidade e procura refletir as temáticas da cultura de rua em um espaço onde é difícil ter alcance, na tentativa de abrir caminhos e encontrar possibilidades. “É uma maneira de entrar nesse sistema, né? Mas nem todos estão dentro”, explica Victor.



Em 2023, a cultura hip-hop completou 50 anos, e Campo Grande não deixou a data passar em branco. No dia 11 de agosto, a data exata do aniversário do movimento, uma festa cultural, o Baile do Cinquentenário, foi organizada pelo Colegiado da Cultura Hip-Hop e pela Construção Nacional do Hip-Hop, no Bairro São Jorge da Lagoa, com entrada gratuita. A comemoração foi uma oportunidade para a exposição e valorização do trabalho dos artistas, com participação de DJs, dançarinos de breaking, rap e grafite, além de dar visibilidade e permitir que o estilo alcance dimensões mais amplas. A cantora e compositora já mencionada, Soulra, garante que esse tipo de evento é, sem dúvidas, fundamental para o fomento da cultura e da consciência cultural. “As pessoas só vão gostar daquilo que conhecem, a gente só gosta daquilo que a gente conheceu, sentiu e viu que gostou. Se eu não acesso, não tenho como dizer. Se eu não acesso, só vou me pautar pelo que eu ouço dos outros”, ela garante.



Campo Grande também sedia, desde 2021, o evento anual Campão Cultural, que busca promover a arte local e regional, com destaque para a cultura de rua. Uma pesquisa que analisa a percepção do público sobre o Campão de 2022, realizada pelo curso de Turismo da UFMS, revelou que de 160 pessoas, 100 consideram o evento extremamente importante e contribuidor para a valorização dos artistas locais, da cidade, além de ser uma forma de enriquecimento cultural acessível, de movimentação econômica e lazer. Dentre as sugestões de melhorias, a procura por maior diversidade lidera com 25,5% das respostas, seguida pelo pedido de maior divulgação das atrações, com 21% das respostas.



Luz, câmera, ação!


Cleverson de Oliveira Rojas tem 34 anos, é professor de educação física e apaixonado por skate. Desde os 13 anos vem se equilibrando sobre as quatro rodinhas, praticando com os colegas e, com o tempo, registrando as manobras que aprendiam. Até que em 2015, a partir do desejo de compartilhar momentos entre amigos que usavam o skate como arte de expressão e eternizar as manobras e linhas, resolveu se aprimorar e criar uma produtora audiovisual. Foi assim que nasceu a Produza. “Tudo começou com o skate. A gente andava e nasceu essa vontade de registrar nossas manobras. Conforme o tempo foi passando, a gente percebeu que o skate fazia parte do hip-hop, que o hip-hop tinha mais vertentes. Primeiro a gente teve contato com o DJ, depois com os b-boys, com a galera do grafite. Aí sim a gente foi entender o que era a cultura do hip-hop e que o skate é uma arte que também fomenta essa cultura", conta Cleverson.


A Produza Projeções é um coletivo de fotógrafos e videomakers que se organizam em prol da valorização da cultura de rua. Cleverson explica que ela foi criada com o objetivo de disseminar o movimento por toda a região do Mato Grosso do Sul, através de criações audiovisuais que retratam as diversas variações do estilo hip-hop. Na busca por alcance de novos horizontes, a Produza passou a agregar outros artistas para além do skate, que também estavam à procura de espaço e visibilidade para sua arte. No decorrer dos anos, parcerias com DJs, b-boy, grafiteiros e MCs consolidaram os quatro elementos do hip-hop às produções do coletivo.


Cleverson conta como se deu a trajetória da produtora. “A Produza, nos anos de 2015 a 2018, em seu currículo inicial, se limitou a vídeos e produções fotográficas de skate. De 2018 em diante, com a expansão dentro da cultura de rua, vieram as produções de eventos, agregando artistas regionais. Alguns, inclusive, tiveram as suas primeiras produções e oportunidades realizadas pela Produza.” O coletivo procura atender artistas que carecem de recursos para o investimento no audiovisual, expandindo essas possibilidades para todas as categorias da cultura. Em seus eventos, o coletivo organiza, também, arrecadação de alimentos em contribuição com as comunidades e favelas de Campo Grande.


Sempre presente nos encontros e festivais locais, com amostras fotográficas, palestras e oficinas, o coletivo busca, além de dar visibilidade à cultura de rua, preparar os artistas para produzirem seus próprios materiais. “O foco, além de todo o fomento cultural, sempre foi formar os artistas de todos os elementos do hip-hop a criarem e produzirem o seu próprio material de audiovisual, não se limitarem pela falta de oportunidades e recursos.” Dentro desse objetivo, surgiu, em 2022, um projeto de oficinas gratuitas, chamado “Luz, Câmera e Ação”. As oficinas abrangiam todos os ensinamentos básicos do audiovisual, como, pré-produções, roteiro, captação e edição. “Poder ver novos produtores nascendo de tudo isso, se formando, criando o seu próprio conteúdo e alimentando a cultura é o maior impacto que a Produza poderia deixar de legado nesses anos de trabalho”, garante Cleverson.


Sobre rodas


Durante a década de 1950, na Califórnia, o surf vivia seu auge. A febre era tanta que, quando as ondas não estavam favoráveis para se equilibrar no mar, foi preciso buscar uma saída. Surgiu, então, a brilhante ideia de juntar rodinhas de patins a uma tábua de madeira, e, de repente, os surfistas tinham a possibilidade de simular manobras nas ruas e treinarem os movimentos fora da água.


Cronologicamente, no fim da década seguinte, o skate se popularizou e surgiram as primeiras competições. Em 1980, as manobras começaram a incorporar obstáculos urbanos, dando origem ao estilo street skate, que passou a exercer influência sobre a moda e o entretenimento globais, chegando até o Brasil, onde o esporte foi oficializado apenas nos anos 2000. A prática do skate foi se desenvolvendo, ganhando forma e foi inserida no universo da cultura de rua, quando bandas de punk, rock e hip hop incluíram referências ao skate em suas letras e videoclipes. Hoje, “grabs” e “grinds” ultrapassam os limites do esporte, fazendo parte de uma cultura que abrange música, arte, moda e estilo de vida.


Trazendo essa visão para o Mato Grosso do Sul, em Campo Grande um grupo de mulheres se uniu para fortalecer a prática feminina do skate. Elas se organizam através de um coletivo, o Pantaneiras Skate Girls, que promove encontros mensais onde rolam aulas com empréstimos de skate, campeonatos com premiações e muita troca de experiências. Ana Gorgen, de 28 anos, é uma das representantes do grupo. Nascida no interior do estado de Goiás, Ana conta que seu primeiro contato com a cultura de rua foi na adolescência, quando andava de patins. “Lá na minha cidade, Chapadão do Céu, eu praticava roller agressive (uma modalidade de patins para manobras), enquanto meus amigos andavam de skate, então a turma era mistura skates&patins. Mas foi só em 2014, que me encontrei com o feeling skateboard, comecei a vivenciar mesmo o skate e a comunidade que ele é.” Ana é uma das idealizadoras do coletivo.

No total, seis mulheres se dividem na organização do Pantaneiras, entre edição e captura de imagens e vídeos, busca por autorizações de uso de espaço e equipamentos, escrita de ofícios e de documentos formais e cuidado das redes sociais. Elas são Ana, Nathalia, Duda, Vitória e Larissa. Nathalia Mangini tem 32 anos e só foi andar de skate pela primeira vez aos 27. Apesar de desde nova ter o sonho de subir no shape e deslizar nas pistas de Campo Grande, sua família não deixava. Não que isso a tenha impedido de ir assistir. “Por preconceito, minha família nunca me deixou andar de skate na infância, então eu falava que ia comprar gelinho e aproveitava pra ficar vendo os meninos andarem. Desde a adolescência eu sempre frequentei pistas e eventos voltados para cultura de rua, sempre ouvi rap e hip-hop, então acabou que eu sempre estive inserida nessa cena underground de Campo Grande”, conta. A presença no ambiente do skate proporcionou a Nathalia a oportunidade de conhecer Ana e Duda, que a convidaram para se juntar ao coletivo.

Em dezembro de 2023 o Pantaneiras Skate Girls completa quatro anos. Entre preconceitos e repreensão policial nas pistas, Nathalia afirma que muitas pessoas veem os skatistas como vagabundos ou drogados, o que não é verdade. “No skate todo mundo tem família, filho, profissão… Somos professores, arquitetos, fisioterapeutas, publicitários, advogados, servidores públicos.” Além disso, o coletivo tem o intuito de valorizar a presença feminina na cena do skateboard e eliminar todo preconceito nesse sentido. Nathalia conta que quando começou a praticar, a presença das garotas nas pistas já era maior, mas até hoje muitos meninos ainda têm uma visão negativa sobre elas. “Tem muito menino que anda de skate que tem essa visão de que mulher não sabe andar pensando no nível de manobra, e o coletivo é importante exatamente por isso, para dar confiança a todas as meninas que sentem vergonha de andar com os meninos ou passam por esse preconceito.” Pensando nisso, o grupo passou a organizar campeonatos exclusivos para as meninas e mulheres, que variam dos 11 aos 30 anos e compartilham o mesmo amor pelo skate.


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