As diversas faces do entretenimento noturno de Campo Grande
Brunna Brondani, Mariana Viana, Rebeca Ferro, Sarai Brauna
A trilha sonora muda o tempo todo enquanto se anda na rua 14 de Julho em uma sexta-feira à noite. Funk em uma esquina, uma roda de pagode na calçada, rap se descer mais um pouco. Atravessar a multidão que cerca os bares é passar em meio à fumaça dos cigarros eletrônicos e ambulantes chamando para comprar “a bebida mais barata da rua”.
As madrugadas da cidade morena parecem ter os bares e baladas como base para a diversão, os únicos que permanecem abertos para quem não pretende voltar cedo para casa. Mas, diferente do que acontece na rua 14 de Julho, nos outros locais já não se encontra tanta pluralidade; as músicas tocam de acordo com o público - as pessoas parecem pertencer ao mesmo grupo social.
A rua que se transforma
Em meio à diversidade da rua 14 de Julho, não é difícil encontrar quem se destaque no meio da multidão. Uma dessas pessoas foi Clara Sofia Lopes, 24, que aproveitava a noite com seus amigos e uma mala de viagem. A jovem estava aproveitando as suas últimas horas antes de embarcar em um voo rumo ao seu intercâmbio. Porém, ainda que estivesse de partida, fez questão de conhecer a rua que se tornou a nova atração da capital.
Clara explica que conhecer a vida noturna campo-grandense era algo que desejava há algum tempo. “Geralmente, a gente se concentrava ali no complexo cultural da esplanada ou nas boates noturnas. E esses espaços tornaram-se mais seguros para comunidade LGBTQAPN+ e para mim, por ser um corpo trans na cidade”, explica a jovem. Ela, que não visitava a rua desde junho, se mostrou chocada com a imensidão que tornou o ambiente.
Apesar de a polícia pedir para o som parar próximo da meia-noite, a festa na rua não acaba. Pedro Soares, 64, vende bebidas nas proximidades da rua e conta que as pessoas não vão embora depois de a música acabar, por isso seu comércio improvisado não tem hora para fechar. Enquanto eles estiverem lá, Pedro continua vendendo. Porém, no dia seguinte às 6h30 da manhã, a loja de aviamentos, que nas noites é apenas o fundo colorido da paisagem noturna, abre sem falta. O comerciante e sua família estão nessa rotina há quatro meses.
Em meio às queixas externas de donos de outros bares na mídia; que a rua aberta produz muito lixo vindo de ambulantes e falta de segurança, Pedro se posiciona a favor da defesa da vida noturna de Campo Grande. “Eu já estou aqui há 45 anos praticamente, mas não afeta nada não o comércio noturno, pensa uma coisa que ajudou bastante a 14 de Julho foi essa vida noturna que eles colocaram”.
A comerciante Rosângela apresenta preocupação com o comércio diurno e expressa que quer uma melhora nas condições. A mulher de 55 anos diz que está no comércio da venda de bebidas não alcoólicas de noite como uma forma de compensação, já que as vendas na parte da manhã estão muito fracas. “Então, o comércio durante o dia deveria ter uma propaganda igual aos bares, por exemplo. Teve uma mídia”.
Enquanto para alguns a noite termina, para Beatriz Martins ela só acaba às 4 horas da manhã. Apesar disso, conta que sua maior dificuldade nos lugares que encontra aberto após a meia-noite é se sentir segura, pois quando encontra é um lugar perigoso ou afastado, longe do centro. Atendentes em uma pizzaria, Beatriz e o amigo Luís Adriano saem do trabalho e querem buscar entretenimento seguro nas ruas de Campo Grande.
Luís Adriano comenta sua insatisfação com a capital sul-mato-grossense por não ter lugares para, por exemplo, pedir comida de madrugada após o trabalho ou uma noite de diversão, pois quando tem é extremamente caro. E que deveria ser como em São Paulo, uma cidade que não dorme. Por ser Campo Grande, uma capital em constante desenvolvimento e com crescimento de visitantes, deveria haver lugares para se conhecer em sua opinião.
A região foi transformada para incrementar a vida noturna da capital - Reprodução do Google Maps
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Com o passar do tempo, a rua tão movimentada começa a esvaziar, a música diminui. Quando o relógio marca meia-noite, grupos de jovens são vistos indo em direção à rua Dr. Temístocles, próximo à Esplanada Ferroviária, local que possui diversos pontos de entretenimento noturno. Em frente ao Ponto Bar, Luiz Manoel, 20, declara estar vindo da rua 14 de Julho pois lá “já já fecha”, e para ele a noite não acabaria ali.
Os bares, que são estabelecimentos fechados, não possuem os mesmos problemas da 14 de Julho, como multidões e o som alto, tornando-se um diferencial para quem procura um local para passeio noturno. Outra opção para os jovens que querem sair de madrugada são as festas universitárias, promovidas pelas associações atléticas acadêmicas de variados cursos de instituições de Ensino Superior. Essas festas são marcadas geralmente um mês antes, quando seu público fica recebendo atualizações das atrações e bebidas. Além de serem em ambientes afastados das áreas residenciais e que os locais possuem alvará de shows musicais possibilitando que a música fique no mesmo volume a noite toda, as bebidas são disponibilizadas em formato open bar, com o público podendo se servir à vontade.
Um dos benefícios para as noites e madrugadas realizadas por esses locais — bares, casas noturnas e festas —, está na rotação que eles geram no mercado do entretenimento noturno. Os Disc Jockeys (DJs) e músicos contratados para tocar têm a chance de mostrar seus trabalhos e trazer fama aos lugares com as festas animadas que se tornaram marcas registradas. E, após conseguir certa popularidade, alguns até mesmo se arriscam em produzir eventos alternativos para a cidade.
Procurar um lugar para se divertir tornou-se uma rotina cansativa para Noêmia Kami, 27, pois viu padrões nas operações policiais ao longo das noites campo-grandenses. “Olha, eu acho uma hipocrisia porque vai nos bares héteros, como o Bulicho que fecha depois das 4h, e que estão todos lotados e sem polícia nenhuma, aí quando dá menos de meia-noite, umas 23h30, já tem polícia batendo aqui nos bares gays e acabando com a diversão. É muito descaso com a comunidade [LGBTQIAPN+]”.
Cerveja barata e gelada. Para Murilo Dias da Silva, 32, é esse o atrativo do bar Zé Carioca. Quem passa pelo bar à meia noite e meia encontra o Murilo aproveitando a madrugada junto com os seus clientes. O bar é dividido em duas unidades, a primeira abre às 9h da manhã e fecha às 3h da manhã, que é quando o público vai para a outra unidade. Enquanto a segunda abre às 22h e fecha às 6h.
Diversas formas de aproveitar a noite eram notadas no local. Na parte de dentro, skatistas fazem manobras, alguns jogam sinuca ou fogem do clima chuvoso. No fundo, pagode é o que sai das caixas de som. Mas a festa acontece na parte de fora, onde a maioria do público estava. Em frente, um ambulante que popularmente é conhecido como “Copão Comunista” vende vodca com energético rodeado por pessoas ao som de um funk. E do lado, um trailer com o nome “SapaDog” prepara os mais variados lanches.
Segurança
Não é difícil encontrar viaturas policiais realizando rondas pela rua 14 de Julho, mas a presença delas não é o suficiente para que quem frequenta o espaço se sinta seguro. Para Fernando Cruz, 61, a violência policial é algo que ele presencia há muitos anos, pois afirma fazer parte de apresentações teatrais de rua desde 1999 e que nunca, em todos os 25 anos passados, deixou de frequentar e de observar a repressão da polícia. “Ocupar os espaços públicos em Campo Grande é difícil por causa do conservadorismo político da cidade, sempre foi uma batalha, e eu falo isso por todas as manifestações artísticas de arte pública que ocupam a rua e sempre encontram uma grande dificuldade pela burocracia que é o mecanismo de controle da cidade e pela repressão policial”, explica Fernando Cruz.
Para Vênus Eugênio Gomes, frequentar os locais de entretenimento noturno da cidade não é nenhuma novidade. Ela, que se considera uma mulher das ruas e que adora sair, já conheceu muitos lugares de Campo Grande, e explica que em todas as vezes que esteve na rua 14 de Julho, nunca viu a polícia agindo com hostilidade, porém em outros lugares já não é possível dizer a mesma coisa. “Aqui na 14 especificamente nunca aconteceu nada que eu tenha visto, só no máximo uns camburões passando. Mas eu acho que o máximo de violência policial que eu já sofri na vida foi uma bomba de gás lacrimogêneo que eu tomei no Escobar do meu lado, em 2022, e um gás de pimenta que eu tomei no Zé [Carioca] no início deste ano”, explica Vênus Gomes.
Entre tantas pessoas presentes na 14 de Julho, encontrar o vereador recém eleito Jean Ferreira, 22, não foi uma surpresa, ainda mais nas ruas, um espaço público de política popular. “Aqui [na rua 14 de Julho] falta a gestão pública, falta organização. Falta efetivo dos órgãos de fiscalização, de segurança, de cultura e de lazer para que o rolê aconteça de forma organizada. Os problemas aqui são de segurança, a organização do poder público não consegue trazer segurança sem repressão. Quando tem a polícia é para acabar com o rolê de forma violenta, então a gente precisa de segurança, mas não de repressão”, afirma o vereador.
Apesar de acreditar que seja um assunto de segurança pública os casos que aconteceram nas ruas ao redor do bar, e que deveria ser assegurada pela prefeitura, Murilo diz que o Zé Carioca tomou algumas medidas para diminuir brigas perigosas no local. A venda de cerveja na garrafa passa a ser apenas nos populares “copões” de plástico e os “cascos” de compras anteriores são recolhidos pelos funcionários, colheres não acompanham mais os pedidos e o bar se torna uma espécie de conveniência.
Serviço público
A atuação da prefeitura na organização do movimento de rua é quase nula na percepção de quem frequenta a 14 de Julho. “Os comerciantes precisam viver, a comunidade precisa dormir e trabalhar e os gestores da cidade precisam se preocupar em como está sendo a sonoridade do local, como a comunidade recebe esse impacto. A 14 [de Julho] por muitos anos não teve esse lazer que nós estamos tendo aqui, e mais uma vez a gente não tem a prefeitura aqui fazendo esse cuidado, ouvindo os moradores e os comerciantes”, explica Clara Sofia Lopes. “Eu já vi gente passar mal [no Zé Carioca] e nós não temos uma ambulância de pronto atendimento ali para buscar essa pessoa demorou um intervalo de uma hora e meia para ambulância chegar e socorrer essa pessoa em coma alcoólico os moradores”
Para o vereador Jean Ferreira, a gestão pública precisa estar em diálogo com a sociedade. “A gente precisa de segurança com fiscalização, dialogando com a população e organizando o rolê de forma tranquila. Se tivesse interesse em fomentar a cultura e fomentar o lazer [a 14 de Julho] aconteceria de uma forma segura, organizada e regulamentada certinho e com muita segurança jurídica. Coisa que não aconteceu com esses lugares e atrapalha a comunidade em volta”, explica o vereador.
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A rua vazia com copos, garrafas de vidro e de plástico e bitucas de cigarro é como se encontra a 14 de Julho e seus arredores pela manhã. Logo cedo, é possível ver os trabalhadores públicos fazendo a limpeza, recolhendo e armazenando o lixo encontrado. Um pouco mais tarde, as calçadas das lojas estão molhadas e com sabão, sinal dos próprios comerciantes limpando sua fachada. Assim como Rosângela, que relata que tem de limpar a frente de sua loja por terem urinado na dela e de sua vizinha.
Pela manhã, a improvisada venda de bebida de Pedro se torna unicamente uma loja de aviamentos. “Inclusive parece até ser uma brincadeira, mas nós já vendemos linha, já vendemos material de aviamento tarde da noite”, relata o comerciante. O lojista mantém uma opinião positiva acerca da nova forma de comércio, relatando uma melhora no policiamento do local.
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