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Doce resistência

Cultura e tradição fazem o Festival da Rapadura de MS um sucesso de nove anos


Texto e fotos: Ana Beatriz Leal, Raíssa Rojas e Sandy Ruiz



Nos três primeiros meses, uma pequena raiz se desenvolve e, com a chegada da seca e do inverno, seu crescimento passa a ser mais lento. São árduos cinco meses, seguidos de mais sete vegetando e crescendo. Quando a cana-de-açúcar chega então a sua maturidade, está pronta para o seu primeiro corte, um momento muito esperado. A comunidade se junta para a colheita e mais tarde para a moagem, que resulta no caldo da cana, famoso pela sua doçura. As máquinas são grandes e barulhentas, mas é esse som que conta uma história, uma antiga tradição que não foi deixada para trás. Quando esse suco chega às caldeiras, a fervura levanta fumaça por todo o lugar e em poucos instantes o forte cheiro do melado toma conta. Depois de muito trabalho e alguns calos nas mãos, o doce natural está moldado e seco, e a rapadura pronta. Ela, que une pessoas e sustenta comunidades, traz, acima de tudo, uma narrativa de luta, sobrevivência e resistência que nunca deve ser esquecida.

Mesmo com a tradição viva, há uma grande preocupação com quem a manterá no futuro. Edmirson Sérgio do Carmo, de 62 anos, é produtor e cidadão de Furnas do Dionísio, quilombo remanescente localizado no município de Jaraguari-MS. Ele conta que acompanhou toda a trajetória do Festival da Rapadura, assim como muitas outras festividades que ocorrem no local, pois é nascido e criado lá. Afirma que a importância do evento é trazer o público do estado de Mato Grosso do

Rapadura: Feira atrai turistas há nove anos


Sul para conhecer a comunidade. Ao ser questionado se passou a tradição aos filhos, Edimirson brinca: “Ih, nem chega perto. Não gostam, né?”, mas também lamenta: “A juventude de hoje não tá indo para esse lado...é um trabalho muito manual, é muito forçado. Mas alguém tem que continuar, isso não pode acabar agora".

Ao lado da “Barraca do Recanto”, de Edmirson, encontra-se a tenda “Grupo de mulheres Rosa Branca”, onde Maria Batista da Silva, de 63 anos, vende seus produtos na 9ª edição do evento. Ela conta que carregam esse nome em homenagem ao grupo que deu início ao Festival da Rapadura. "Começamos com 15 mulheres e um canavial plantado…Como nós tínhamos o grupo e tínhamos a cana, fizemos acontecer. Faço parte desse coletivo até hoje”. Maria é uma das moradoras de longa data na comunidade e afirma ter orgulho de sua origem, a Comunidade Quilombola Furnas de Dionísio.


Fazendo história


Após a abolição da escravatura, um ex-escravo junto com sua família se deslocou de Minas Gerais para Jaraguari, em Mato Grosso do Sul. Ao entrelaçar madeiras verticais fixadas no solo e uni-las com vigas horizontais de bambus, amarradas entre si por cipós, preencher a superfície com bastante argila e finalizar com bastante sapé, Dionísio Antônio Vieira construiu a primeira casa de pau a pique que daria origem posteriormente à comunidade quilombola Furnas do Dionísio.

Atualmente, a comunidade conta com aproximadamente 92 famílias que vivem ali e todas afirmam ser descendentes diretas do fundador. Além das terras, Dionísio deixou uma herança muito particular para seus descendentes. Como ex-escravo dos engenhos de açúcar, passou adiante suas habilidades no trabalho com o solo e principalmente com a cana-de-açúcar, essa que hoje é a matéria-prima de diversos produtos culturais da comunidade, como a famosa rapadura tradicional que os trabalhadores produzem e comercializam.

Entre as rodas de conversas de vários produtores há uma questão em comum, a busca de uma forma de garantir sustento das famílias que vivem na comunidade e exibir para as pessoas de fora as mercadorias produzidas dentro do quilombo. Nesse sentido foi criada a associação dos pequenos produtores rurais das Furnas do Dionísio. Nela, os trabalhadores desenvolveram com o apoio da prefeitura a ideia de utilizar as plantações de cana-de-açúcar disponíveis para a criação do Festival da Rapadura. O evento que se tornou anual conta com a participação de vários membros do quilombo, que lutam não só para manter viva a tradição como para poder levá-la à frente. "Nós fizemos o primeiro festival da rapadura e hoje já está na nona edição. Nós, mulheres, estamos aí trabalhando e lutando. Às vezes, até recebendo críticas e pancadas porque não queremos deixar o nome do grupo cair. Mas, a gente vai em frente porque ninguém é perfeito", argumenta Maria Aparecida.



Tradição: cultura dos antepassados pode se perder nas próximas gerações


O produto que um dia escravizou os negros, hoje adquire um novo significado para os quilombolas. A ideia do festival se concretizou e durante seus dois dias de duração, as famílias se revezam para a preparação do evento. O trabalho começa muito antes do que as pessoas podem imaginar, todo o cuidado já se encontra na produção das mercadorias, preparação dos espaços para o público e é claro, a comercialização no dia do evento.

Como tudo é feito de forma artesanal, em cada um dos produtos existe uma longa história de cada família que começou a produzi-lo. Através da visibilidade que as famílias recebem nesses dias, demonstram com muito empenho e carinho, o tradicionalismo que existe em suas produções e ajudam a levar o sustento para as famílias que vivem nos quilombos.As comidas são feitas até hoje com receitas de família iniciadas na época de Dionísio e são muito apreciadas pelo público. Cada ingrediente carrega uma enorme bagagem histórica e representa a vida de inúmeras famílias. Apesar disso, o desgaste do tempo tem sido cada vez mais notável nas últimas gerações. Maria conta que suas receitas são tradição, aprendeu com sua mãe e ensina para suas filhas e netas. "Eu faço porque gosto de fazer e gosto de vender. Eu gosto de fazer porque isso aqui é recordação…Mas ninguém vai querer seguir isso aqui. Todo mundo gosta mas: ‘Ai, não vou fazer, não dá dinheiro’ ”, suspira a produtora. O interesse pelo trabalho com a cana-de-açúcar e com a farinha tem diminuído com o passar dos anos dentro do próprio quilombo. Enquanto os mais jovens se perguntam com o que irão trabalhar, os mais velhos se perguntam com quem ficará a missão de prosseguir com a tradição.


Além da Rapadura


O nono Festival da Rapadura contou com as presenças de Eva Santana do Prado (72) e Elza Vilela Lima (73), frequentadoras desde o primeiro festival, em 2013, e assíduas a cada ano. Eva é moradora de Campo Grande-MS, porém aproveita o evento para curtir Furnas do Dionísio. Comenta que antigamente não tinha um suporte do governo e da prefeitura, mas o cenário mudou ao longo dos anos de festival, quando perceberam sua importância. “A prefeitura de Jaraguari e o governo do Estado apoiam muito aqui. Cada vez eles aprimoram”.

Elza mora em seu rancho que fica próximo a Furnas de Dionísio, ela comenta que não vai à comunidade todos os dias, mas está presente em todas as festas. “Não só da rapadura, mas outras festas que acontecem, nós participamos. É uma tradição muito legal como a prefeitura dá a maior força para Furnas”. Sua história com a comunidade é antiga, a conhece desde seus avós e continua com seus netos que estudaram na Escola Municipal Rural de Educação Fundamental.

Furnas do Dionísio também contou com a presença de estrangeiros. Kiki Skog (51) e Laura Caligari (48), sueca e uruguaia respectivamente, profissionais da Universidade de Estocolmo, conheceram a sul-africana Kate Le Roux (53) na Conferência de São Paulo sobre “Matemática, ensinar e aprender”. Elas aproveitaram a oportunidade para conhecer a cultura da comunidade e o festival, “Este lugar é incrível para se visitar!”, exclamou Kiki.

A comunidade de Furnas encara cada vez mais o potencial turístico na sua cultura e nas paisagens da região. A comercialização com o público externo tornou-se uma oportunidade aos produtores para uma fonte de renda extra e compartilhar um pouco da sua história. Nilson Martins, ex-presidente e atual tesoureiro da Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Furnas do Dionísio, nascido e crescido na comunidade quilombola, comentou como a nona edição foi a primeira vez em que assumiram a organização do evento e está muito feliz com o resultado.

“Para o ano que vem, a gente começa a se preparar agora. Amanhã já estamos pensando no próximo”, relata Nilson, orgulhoso ao falar da importância da tradição e da qualidade dos produtos oferecidos no festival, “A alegria maior que eu vejo hoje é ver os produtores tirando sua renda daqui, sem precisar ir para outro lugar, e ver o sorriso no rosto deles, estarem na própria comunidade comercializando seu produto”. A tradição pode ser ameaçada futuramente pela falta de interesse da juventude na produção

Resultados: organizadores estão felizes com a feira

e comercialização da rapadura, entretanto o Festival Anual da Rapadura da comunidade Quilombola Furnas do Dionísio já carrega o título, desde 2016, de Patrimônio Histórico Cultural do Mato Grosso do Sul.




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