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Dois lados da mesma moeda

O abandono afeta tanto a criança quanto o adulto e, para acolhê-los, nascem as casas de acolhimento.

Texto: Lucas Artur e Valesca Silva

Imagens e Infográfico: Lucas Artur


Casa Lar da Ação Humanitária, responsável por cuidar de mais de 130 moradores de rua e 16 gatos


Ana Paula Souza, 50 anos, mãe de dois filhos e esposa dedicada, tem uma história de vida marcada por dor, superação e resiliência. Nascida em uma família desestruturada, enfrentou desafios imensos desde a infância para chegar aonde está. Este texto é baseado em uma história real, porém os nomes são fictícios para preservação da identidade.

Ana nasceu em uma pequena cidade do interior, filha única de Maria e José. Desde cedo, sua vida foi marcada pela turbulência. Seus pais enfrentavam graves problemas com o alcoolismo e as brigas eram constantes. Muitas vezes, Ana era o alvo das agressões físicas e verbais. “Meu pai e minha mãe brigavam muito, e muitas vezes eu era o alvo das agressões”, relembra Ana, com tristeza nos olhos. Aos cinco anos, a situação se tornou insustentável e Ana foi deixada aos cuidados de sua tia materna, Joana.

A mudança trouxe algum alívio inicial. Joana, uma mulher carinhosa, tentou proporcionar um lar seguro para Ana. No entanto, o marido de Joana, Carlos, tinha um comportamento abusivo e frequentemente maltratava a menina. “Ele não queria me aceitar. Dizia que eu era um peso para a família”, conta Ana. A situação na casa de sua tia foi se deteriorando ao ponto de o Conselho Tutelar ser acionado.

Após uma denúncia anônima, agentes do Conselho Tutelar investigaram a situação e decidiram retirar Ana da casa de sua tia Joana. Aos nove anos, Ana foi encaminhada para um abrigo. “O abrigo era melhor do que a casa do meu tio, mas ainda assim foi muito difícil. Eu sentia falta de um lar de verdade, de alguém que realmente se importasse comigo”, diz Ana, com a voz embargada pela lembrança dos dias frios e solitários no abrigo.

Aos 16 anos, a vida de Ana tomou um novo rumo. O Conselho Tutelar conseguiu localizar uma tia paterna, Luísa, que se dispôs a acolhê-la. “Minha tia Luísa foi um anjo na minha vida. Ela me deu carinho, apoio e, pela primeira vez, eu senti que tinha uma família de verdade”, afirma Ana, com um sorriso no rosto. Com o apoio de Luísa, Ana conseguiu concluir o Ensino Fundamental. No entanto, devido ao abandono e aos constantes desafios de sua juventude, não pôde continuar os estudos além disso.

Determinada a garantir uma vida melhor para si mesma, Ana começou a fazer faxinas em casas de família. Seu objetivo era conquistar independência financeira e construir a própria família. "Minha tia me ajudou muito, mas sempre quis ter as minhas coisas e poder construir uma família", explica Ana.

Aos 24 anos, ela conheceu Marcos, um homem trabalhador e gentil. Eles se casaram três anos depois, em uma cerimônia simples, mas repleta de amor e alegria. Sempre sonhando em se casar e ter filhos, Ana finalmente realizava o desejo de dar aos seus filhos aquilo que não teve quando era criança. Hoje, Ana e Marcos têm dois filhos, Clara e Pedro. “Minha família é meu maior tesouro. Tudo que eu passei me ensinou o valor do amor e do respeito”, diz Ana, emocionada. Ela faz questão de ser uma mãe presente e carinhosa, proporcionando aos filhos o que nunca teve na infância.

A dor do abandono e dos maus-tratos ficou para trás, mas Ana tomou a decisão de não rever seus pais biológicos. "Até hoje, não tenho mais contato com minha mãe e meu pai. A escolha de manter distância é para preservar minha paz e a de minha nova família", afirma Ana, convicta de que essa foi a melhor decisão para todos.

A história de Ana Paula Souza é uma realidade compartilhada por muitas crianças que enfrentam ou enfrentaram uma infância marcada por abusos e abandono. Desde muito jovem, Ana Paula foi exposta a situações de vulnerabilidade extrema e convivendo em um ambiente onde a negligência e a violência eram constantes.


O abandono de crianças e adolescente em Mato Grosso do Sul


Segundo o Conselho Nacional de Justiça, 31% das crianças em abrigo no Brasil estão lá por causa da negligência da família; 12% por conflitos familiares; 10% por abandono; 8% por pais dependentes químicos e alcoólatras; 4% por abuso sexual.

Campo Grande registrou os maiores índices de crianças e adolescentes em abrigos de Mato Grosso do Sul. No estado são mais de 780 crianças abrigadas em instituições ou casas de acolhimento. Somente na capital foram 191, seguido dos municípios de Ponta Porã (56), Corumbá (47) e Três Lagoas (40).

O perfil médio de crianças em abrigos no estado é de meninas pardas, com mais de seis anos de idade e com irmãos e/ou irmãs. O perfil que os pretendentes à adoção desejam é outro: crianças com menos de seis anos e sem irmãos.


O outro lado


Maura de Moraes Pires é a fundadora da Casa Lar Ação Solidária, trabalhando desde 2010 no acolhimento de pessoas em situação de rua, usuários de drogas e idosos abandonados. Dedica-se a cuidar de 10 pessoas em uma casa alugada no Guanandi, sendo cinco idosos. Cuida também de Waldir, que não tem metade da massa encefálica, e de um rapaz não-verbal com Síndrome de Down e autismo. A mãe dele morreu, não o deixava sair de casa e o pai só foi descobrir do filho com a morte da mãe – que, ao saber da condição neuro atípica do filho, o abandonou.

A casa em que ela acolhe é, na realidade, interditada pela Prefeitura. É velha, imprópria para a moradia dos idosos, cheira mal. As roupas de cama, colchões, cobertas, são oriundos de doação. Tudo na casa é. Mas são velhos. Porém, ainda há um teto sobre essas pessoas. Paredes que protegem do vento frio, como os 12°C que fazia durante a entrevista.


Bazar beneficente que a Casa Lar organiza. Cada peça custa um real


“A gente tem consciência – tá interditado! –, a casa tá muito velha, é insalubre para idosos, a gente tem essa consciência. Porém, não adianta eu assumir algo que é muito maior que eu. Porque hoje eu dependo de trabalhar de alguma forma para manter o que eu cuido”, se explica Maura.



Maura de Moraes Pires comenta

Maura de Moraes Pires tem 48 anos. Não tem ideologia política: “eu abomino política, não sou apolítica porque é ignorância demais”. Ano passado, ao dizer que não deixava entrar político na casa, disse a ela: “morador de rua não dá voto”. Já foi cabeleireira e diarista. Tem dois filhos e é mãe solteira.

A fundadora da Casa Lar, Maura, 48 anos. "Impossível tirar fotos sem aparecer os bichos que cuido"


Maura começou o projeto em 2010 após sofrer um acidente e ficar na cadeira de rodas. Além dos dois meninos, tinha adotado uma menina com câncer do Hospital Regional e que precisava fazer quimioterapia. Os quatro moravam em uma casa com um aluguel alto, perto da saída para São Paulo. “E aí, nós achamos uma casa aqui no Guanandi na rua de trás, aqui na rua Juruá. Achamos uma casa por R$ 300,00. Por quê? Porque era a ‘rua das drogas’. Era a pior rua do bairro. Eu lembro que estava sentada de costas pra rua e tinha um portãozinho de metal. Deram um tiro no portão. Eu levei um susto tão grande que eu quase caí da cadeira de rodas”.

Como o pai mandava dinheiro para ajudá-la a se sustentar, afinal não podia trabalhar, pedia muita comida por delivery, até porque não tinha condições de cozinhar. E as crianças em situação de rua perto da casa dela, sempre vinham perguntando “tia, sobrou alguma comida aí?’. “Meu amigo chegou em casa e eu disse: ‘você consegue fazer uma almofada que eu alcance o fogão?’, e ele arrumou, fez uma gambiarra. O pessoal me ligava, os clientes: ‘Maura, o que você tá precisando?’ e eu falava ‘comida’. E aí a gente começou o trabalho”, e depois nunca mais largou. Conta que, ao tirar o gesso em maio, a primeira coisa que fez foi ir à ponte.

“Todos os dias eu me pergunto como uma pessoa consegue deitar dentro do quarto quentinho – porque é muito bom ter uma casa, tomar um café quente – pensando que tem um irmão se molhando?”.

A fundadora explica que sempre trabalha com afeto, carinho. O projeto busca oferecer, além de alimento e bens básicos de consumo, afago aos moradores da rua. O abrigo dá carinho àqueles que são considerados o lixo social. Mas além de cuidar das pessoas em situação de rua e de usuários de drogas, a Casa Lar também trabalha com as famílias, pois, segundo ela, a família é mais doente que o usuário. Cada uma das mais de 130 pessoas que o projeto atende.

Um dos alojamentos que os avôs (forma carinhosa que Maura se refere aos idosos que cuida) dormem


Essas pessoas vivem em abandono. Diversas faces de abandono. De suas famílias, do Poder Público, da sociedade. São párias. São sintomas de uma doença social. Caem na armadilha das drogas para se distraírem da fome. Principalmente do crack, pois um dos seus efeitos no organismo é a saciedade e falta de apetite, além de diminuir a percepção de frio do usuário.

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