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Fragmentos de memória

Os desafios da Doença de Alzheimer  no cotidiano e na família de Josias Santana, um trabalhador que virou contador de histórias 


Brunna Brondani e Sarai Brauna


Pode começar com não lembrar coisas recentes, dificuldade para encontrar palavras, desorientação e agressividade. No princípio parece imperceptível ou algo que acontece de vez em quando, mas esses são sintomas de uma condição neurodegenerativa que atinge boa parte dos idosos: o Alzheimer. Josias Santana, aposentado de 84 anos, apresenta os sinais da doença há um longo tempo.

O pernambucano veio para o Mato Grosso do Sul aos cinco anos. Conheceu a esposa, Maria de Lourdes Santana, 80, em Glória de Dourados (MS) e se mudaram para a capital porque queriam dar uma condição de estudo melhor para os filhos. Ao longo de 62 anos de casados, construíram juntos tudo o que têm hoje: a casa, a família e a vida. Josias assumiu algumas profissões para nunca deixar nada faltar à família. Foi taxista, ourive, fotógrafo, dono de bar e vendedor de doces.

Há 20 anos, Josias viu a esposa na garupa de uma moto usando uma saia longa. Ao contar para os filhos, a história se tornava cada vez menos plausível. Maria tinha ido ao ponto de ônibus, mas não tinha subido em uma moto. Maria não tinha uma saia longa. Esse foi um dos primeiros sintomas que o aposentado apresentou ao longo dos 13 anos sem diagnóstico. Enquanto isso, os dias eram como todos os outros.

Aos sábados os membros da família Santana — os filhos Maria José, 56, Gilson, 54, e Sueli, 49 —, e os mais próximos, sabiam que uma reunião estava marcada, não formalmente, mas era uma parte da rotina do final de semana. Sentados em cadeiras formando uma roda, conversando casualidades, seu Josias começava a contar uma história de uma de suas tantas profissões.

Fábio Florentino, casado com Sueli Santana, sabia de todas as histórias. Sentava na varanda com o sogro e começava a ouvir ele contar de quando era taxista, ourive, fotógrafo, pastor e presidente de bairro. Mal sabiam que no futuro elas aumentariam, e descobririam estar falando com um ex-soldado que subiu a patente para tenente, caso que ganhou forma após ter ganhado um boné verde.


Sapato, janela e carro


Para os filhos, apesar dos pequenos sintomas apresentados pelo pai, o Alzheimer começou sete anos atrás com o diagnóstico. Josias caiu de dois degraus da escada quando trocava uma lâmpada em frente de seu antigo bar. Maria José, única filha que mora em Campo Grande, levou o pai para o hospital para fazer uma tomografia. 

Após a queda começou a sentir muita tontura e por isso passou por diversos exames. Josias tinha histórico de labirintite —  uma infecção no ouvido interno que pode causar problemas para se equilibrar, náuseas, tonturas e vertigens. Em uma dessas idas ao hospital, os médicos acharam falhas na memória, o que fez a família buscar um neurologista cognitivo.

Durante os exames a médica aplicou testes neuropsicológicos, como o Exame do Estado Mental (MMSE). Um deles consistia em falar para Josias três palavras, Sueli conta que as dele eram: sapato, janela e carro. Em seguida, a profissional fazia uma pergunta simples sobre o paciente, como sua idade, por último perguntava quais palavras tinha falado inicialmente. Josias só conseguia repetir uma. 

Após o diagnóstico, Maria de Lourdes ainda passou alguns anos cuidando sozinha do marido. Mas quando os sintomas se tornaram mais frequentes, os filhos se reuniram para decidir como funcionaria a rotina. Cada um passaria cinco dias na casa dos pais. O acordo funciona até hoje. 

O Alzheimer evoluiu com o tempo. As histórias, que tanto repetia, foram sumindo e as lembranças foram cada vez mais se tornando inexistentes. Os filhos deixaram de ser figuras conhecidas, agora o chamam pelo nome, pois já não responde por pai. Maria de Lourdes, que o acompanha desde o começo, agora é chamada de mãe pelo marido. Como filho obediente que cresceu sendo, pede a bênção quando a vê.


O cuidado

 

Sueli relata com um carinho na voz que além de ser um exemplo de pai, é a pessoa mais honesta que já conheceu na vida. “Criou tão bem os filhos que hoje os três estão aqui cuidando dele com muito prazer”. Como é a mais nova dos irmãos, tenta lidar com as adversidades do dia a dia de cuidar do pai com leveza e bom humor.

Ao refletir sobre a doença, busca um lado bom. “Você vê que a gente ainda consegue brincar, se divertir, tem uns momentos ainda e você não vê sofrendo. Tá ali quietinho, não tá sofrendo.” Mas nem todos os dias são assim. A filha relembra de quando precisou tirar todos os trincos dos banheiros e uma das portas para dar lugar a uma cortina.

Outros cuidados como esse são necessários. Segundo o médico neurologista e professor de Medicina da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Omar Gurrola Arambula, o cuidador deve evitar quedas do paciente em casa, conhecer medidas para reduzir a agitação, realizar atividades físicas e fortalecer estratégias para evitar acidentes no banheiro. Além disso, é crucial saber como agir para diminuir o estresse do idoso. Também não recomenda discutir ou corrigir constantemente, pois provavelmente o paciente vai esquecer o que foi repetido várias vezes, causando frustração nos envolvidos.

 

“Eu preciso trabalhar”


Ao chegar na casa de Josias e Maria, nota-se ao lado as duas portas de metal fechadas do que antes era um bar. O barulho do portão indica que está abrindo e dá acesso ao interior da propriedade. Na varanda há três cadeiras, Sueli conversa com a mãe, enquanto isso, com os olhos fechados, Josias repousa um pouco mais para o fundo, o que virou uma rotina por causa da medicação. De vez em quando balbucia algumas frases.

O final da tarde de domingo era o momento de se exercitar um pouco. Sueli chama “Seu Josias”, com insistência, Josias levanta da cadeira para ir até o portão. “Tá tudo igual”, diz ao olhar a rua. Quando solicitada uma entrevista, o aposentado nega e revela que precisa ir trabalhar. A vida toda de trabalho ainda se faz presente em sua memória até os dias de hoje. O homem que era tão ativo, hoje passa boa parte do dia dormindo.

Josias na calçada de sua casa. (Foto: Brunna Brondani)


Ele continua sendo o Josias pastor, o Josias dono de bar, o Josias vendedor de doces, o Josias ourive, o Josias taxista, o Josias fotógrafo, o Josias pai, o Josias marido e o Josias filho. Passou por todas essas fases novamente, do presente para o passado, em poucos anos acreditou viver ainda nelas e se orgulhava de contá-las repetidas vezes. Esse Josias ainda existe, apenas perdido em alguns fragmentos de memória.

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1 Kommentar


Mariana Nascimento
Mariana Nascimento
14. Dez. 2023

Um tema que deve ser mais falado, parabéns por tratar dele. A reportagem está muito boa.

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