Literatura IndĂgena e sua (in)existĂȘncia no Mato Grosso do Sul
- brunnabrondani
- 4 de set. de 2023
- 4 min de leitura
Com a terceira maior população indĂgena do Brasil, Mato Grosso do Sul possui apenas uma autora, de etnia GuatĂł, com dois livros publicados
AmarĂlis Pires, Fernanda Monteiro, Gabriel Barbosa e Nathana Nunes.
Gleycielli Nonato ainda luta por mais espaço, para ela, como autora indĂgena, e para seu povo, dentro da literatura, que Ă© pouco difundida em nosso estado. O Mato Grosso do Sul, que detĂ©m a terceira maior população indĂgena do Brasil, curiosamente possui apenas uma escritora indĂgena com livros publicados. Para ela, Ă© essencial dar visibilidade a futuros autores indĂgenas que gostariam de produzir literatura mas sĂŁo silenciados. âLeia e viva bastante. Siga com amor Ă sua ancestralidade e respeito Ă s outras. A literatura dos povos originĂĄrios Ă© a ramificação da sua ancestralidadeâ.

Segundo o mestrando em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, JosĂ© Fernando Rosa Graça, a ausĂȘncia de mais autores indĂgenas âĂ© falta de interesse do governo, porque se a gente for realmente investigar o fundo de verba governamental, hĂĄ certas coisas que poderiam ser publicadas e nĂŁo sĂŁo. AlĂ©m disso, as pessoas tĂȘm dificuldade em entender os editais, Ă s vezes atĂ© nĂłs, estudantes, temos dificuldade em entender certas palavras presentes no editalâ.
Falta interesse do governo
Paralelo a isso, a Gerente de PatrimĂŽnio do FIC, Melly Sena, afirmou que a Fundação tem por objetivo promover polĂticas pĂșblicas. Entretanto, elas nĂŁo sĂŁo tĂŁo difundidas e, por isso, nĂŁo alcançam todas as minorias. Sendo assim, o problema nĂŁo Ă© a falta de polĂticas pĂșblicas, e sim, a falta de inclusĂŁo da população. As dificuldades tambĂ©m foram percebidas por Gleycielli Nonato durante o processo de publicação de seu segundo livro, pois, segundo ela, o edital era extremamente burocrĂĄtico. Ressaltou ainda que ter indĂgenas trabalhando como peĂ”es Ă© mais proveitoso para o governo do que ter autores indĂgenas produzindo literatura.

Falta incluir a população nas polĂticas pĂșblicas
âQuando nĂŁo te dĂŁo espaço, vocĂȘ conquistaâ
A mulher de cabelos escuros, presos em uma trança lateral e com um adorno vermelho que segue de sua orelha por toda a extensĂŁo das madeixas, nos recebeu sorridente. Com sua fala suave e, ao mesmo tempo, marcante, Gleycielli Nonato contou sobre sua trajetĂłria na literatura e todos os desafios atĂ© se tornar a primeira autora indĂgena sul-mato-grossense com livros publicados.

Ănica representante: autores indĂgenas nĂŁo sĂŁo publicados no MS
Nascida em Coxim e pertencente Ă etnia GuatĂł, durante a infĂąncia estudou em um colĂ©gio catĂłlico e, por nĂŁo se sentir pertencente a nenhum grupo, refugiou-se na biblioteca do local. LĂĄ, ela lia muito, assim teve inĂcio seu interesse por literatura. Ao mesmo tempo, gostava muito de mĂșsica, e começou a fazer aulas para conseguir colocar notas musicais dentro das poesias. âA poesia Ă© isso, Ă© uma coisa instintiva, ela sai, flui. E a poesia começou a fluir em mim desde pequena. O primeiro gĂȘnero literĂĄrio que eu comecei a escrever foi a poesiaâ.
No ano de 2006, mudou-se para Campo Grande, onde residia em uma repĂșblica de artistas, fundada por JosĂ© Mauro Messias. Na capital, cursou Jornalismo, mas apĂłs trĂȘs semestres, decidiu mudar para Artes CĂȘnicas. No curso, teve um contato mais profundo com a interpretação e participou de movimentos de teatro de rua e manifestaçÔes culturais. Ao finalizar a graduação, presenteou-se com uma viagem pela AmĂ©rica do Sul â visitou o Paraguai, o Uruguai, a Argentina e a BolĂvia. âFui conhecendo quilombos, comunidades indĂgenas. Fui para conhecer o meu prĂłprio povo, o povo GuatĂł, porque eu sou uma desaldeada. Eu nĂŁo fui criada dentro da comunidade GuatĂł, assim como 80% do meu povoâ. A etnia GuatĂł vivia espalhada pelos onze pantanais e hoje esse territĂłrio nĂŁo pertence mais aos povos indĂgenas. âMuitos de nĂłs se viram obrigados a trabalhar dentro dessas fazendas como peĂ”es pantaneiros. Essa neocultura pantaneira, que o Brasil tem orgulho e existe no Mato Grosso do Sul, sĂł existe porque diluĂram e mataram a cultura do povo GuatĂł. E isso aconteceu com a minha famĂlia, que teve que sair das suas terras para procurar emprego e sobreviverâ, lamentou a autora.
Posteriormente, Gleycielli Nonato retornou para Coxim, casou-se e teve filhos. Ao mesmo tempo, começou a faculdade de Letras, porĂ©m, nĂŁo conseguiu dar continuidade devido Ă s responsabilidades como mĂŁe e esposa. Sobretudo, a paixĂŁo pela escrita nĂŁo deixou de existir. Gleycielli Nonato continuou participando de concursos de redação e poesias e, em 2012, ganhou o prĂȘmio Manoel de Barros na VigĂ©sima-quinta Noite Nacional de Poesia, ao declamar âĂndia do Rioâ no teatro Glauce Rocha. Um ano depois, em 2013, a poesia foi transformada no primeiro livro publicado da autora, mas de forma autĂŽnoma. âCom o lançamento do livro Ăndia do Rio, as portas para a literatura profissional se abriram e vieram outros concursos, e uma coisa foi embalando a outra. No fim, eu jĂĄ estava como um dos 10 livros mais lidos do estadoâ.

JĂĄ o processo de publicação de seu segundo livro, âVila Pequena: causos, contos e lorotasâ, deu-se em 2017, por meio da editora Life, e, para que ele fosse publicado, Gleycielli Nonato submeteu a obra ao edital do Fundo de Investimentos Culturais (FIC). Nele, a autora deu detalhes do projeto do livro, fez o orçamento da publicação e aguardou a verba ser liberada para que ocorresse o lançamento.
Em suas obras, a escritora procura trazer a relação dos indĂgenas com a natureza, a luta feminina e a memĂłria de seu povo. Para ela, Ă© essencial falar acerca de sua ancestralidade e suas origens.
Literatura indĂgena: uma visibilidade necessĂĄria