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Longe de Casa

A jornada de migrantes de diferentes nações ou regiões do Brasil na capital de Mato Grosso do Sul


Texto por Glenda Rodrigues e Milena Melo

Fotos por Glenda Rodrigues


Folhas de papel em formato de pés, é assim que as pessoas sentadas em círculo veem um momento para compartilhar suas histórias. Cada uma delas veio de longe e agora segura o símbolo que representa a sua trajetória, uma longa caminhada que a trouxe para um novo lugar. São os pés que partiram de sua terra natal.

O Encontro de Migrantes e Refugiados, ocorrido em 21 de maio no salão paroquial da Igreja Perpétuo Socorro, em Campo Grande - MS, começou tímido, com poucas cadeiras ocupadas. Nos minutos seguintes, outras famílias de origem iraniana, boliviana, libanesa, venezuelana e haitiana, ou de outras regiões do Brasil, foram acomodando-se. O que eram quatro ou cinco cadeiras de uma tímida reunião tornou-se uma grande roda humana. Cada um se apresentava e contava um pouco de sua experiência como migrante, vindo de outros estados ou de outras nações.



A mulher que se levantou e começou seu discurso é Najah Jamal Daakouur Barakat, 48 anos legalmente e 46 de fato. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), ela relata uma história que se liga aos outros migrantes por ser atravessada por desafios.

O Líbano estava em guerra quando Najah, muçulmana, tinha apenas 14 anos. Precisava ser casada e ter ao menos 16 para sair legalmente do país. O primeiro obstáculo foi vencido ao casar-se e adotar o sobrenome do marido, que à época tinha 33 anos. O segundo obstáculo ela superou ao conseguir a alteração da certidão de nascimento, para fazer constar dois anos a mais, maioridade que lhe autorizava a imigração.

Em 1990, experimentou a amarga mudança forçada de sua terra natal e desembarcou em Campo Grande - MS, cidade de escolha do marido, com a promessa de que teria apoio dele para continuar os estudos em troca de sua juventude. “Seria como vender a minha vida”. Mas não foi o que ocorreu, por vontade do marido. A estrutura para apoiar o imigrante no Brasil na década de 1990 era quase inexistente. A ausência de apoio governamental e a distância de sua família obrigaram-na a adiar o sonho de um dia graduar-se. Na década de 2000, tornou-se mãe. Em 2009, uma amiga propôs o pagamento de seus estudos. Somente em 2012, Najah aceitou a proposta e ingressou no curso de Direito da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Escolheu a vida acadêmica, embora seja de uma família de comerciantes.



Desse período, reviveu lembranças boas e ruins. Descobriu que a língua portuguesa informal que aprendeu sozinha no dia a dia não era a utilizada no banco da faculdade. A linguagem do mundo jurídico era um mundo à parte, entrave que superou com a paciência e compreensão dos professores da UCDB com ela. “Eu cheguei à faculdade, eu e a minha ignorância juntas, e sentamos na primeira fila”, sorri.

Conheceu a Professora da UFMS Ana Paula Amaral, em 2016, ano em que foi instituído o Comitê Estadual para Refugiados, Migrantes e Apátridas no Estado de Mato Grosso do Sul (CERMA-MS). Já se considerava mais madura para o mundo jurídico e decidiu ingressar no mestrado em Direitos Humanos na UFMS tão logo concluiu a graduação, em 2017. “Ali continuava a minha busca pelo enriquecimento e engrandecimento moral, cultural e material”.

Contudo, a dificuldade com o idioma ainda estava presente. Nas primeiras escritas no mestrado na UFMS, tentou fazer um agradecimento enfático, porém formal ao Professor Doutor Vladmir Oliveira da Silveira, mas não teve êxito. “O Professor Vladmir, uma figura fodástico”, lembrou sorrindo da frase desajeitada. Imediatamente, seu amigo de turma a repreendeu com gracejo: “Najah, onde você pensa que está?”. Na dissertação, novamente agradeceu o Professor Vladmir pela disseminação de conhecimento, mas utilizou de forma equivocada o verbo violar. “O Sr. violou todos os espaços com a sua presença” é o trecho dos agradecimentos que novamente lhe arranca um sorriso. Apesar de querer mostrar que tinha cultura, afirma que muitas vezes não conseguia se expressar como em sua língua materna, o árabe.

Nesse idioma, elaborou suas ideias e escreveu seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) para, numa segunda etapa, traduzir tudo ao português acadêmico, numa evidente dupla e exaustiva jornada de esforço para atingir o mesmo objetivo de qualquer nativo em língua portuguesa.

A Mestre em Direitos Humanos lembrou que, durante seus estudos, viveu apenas um episódio de xenofobia, quando ouviu que seu lugar deveria ter sido preenchido por alguém do Brasil e não por quem é de outro país. Respondeu à altura, esclarecendo que o espaço que ocupava era por seu próprio mérito, independentemente da nacionalidade.

Najah lembra que o Líbano está em guerra desde os anos 1970, e os cidadãos continuam buscando outros caminhos e outros rumos. “Ali, no entardecer, o sonho dorme junto. Mama mora lá, meus irmãos moram lá, meu pai até falecer morava lá. Minhas raízes sempre vão ser libanesas. Eu vou para lá sempre que posso”.

Na reunião de migrantes, realizada no salão da Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no dia 20/05, Najah não usou o véu típico das mulheres muçulmanas. Num segundo encontro com ela, na mesquita de Campo Grande - MS, em 26/05, Najah usou o véu a pedido do Sheik egípcio Anwar Ibrahim Sharif, líder religioso local. Justifica que o uso do véu simboliza aceitar, acreditar e estar consciente de que representa uma figura temente a Deus, abdicando-se da vida terrena. Há abdicações necessárias e atitudes que não podem ser feitas, por exemplo, sair sozinha. Quando estiver preparada, Najah disse que usará o véu e representará a sua religião como ela é.

Dormir com o sonho que se sonha acordado. Se para uma realidade sem guerra, muitas vezes os sonhos se atrelam a conquistas materiais ou experiências pagas, no mundo com guerra sonhar significa ter esperança de um dia encontrar um lugar de paz. Marisa Monte compôs uma canção, chamando um lugar de paz de Vilarejo. Ali areja um vento bom e onde, na varanda, quem descansa vê o horizonte deitar no chão. A sorte de ver o dia terminar, como embala a música, nem sempre agracia quem vive num campo de guerra. Najah encontrou em Campo Grande-MS seu Vilarejo que lhe tirou da guerra, abriu-lhe o mundo da maternidade e da vida acadêmica e lhe fez concluir que já viveu várias vidas dentro dos seus 46 anos.


Acolhimento


Quem escuta sua história, de um canto mais afastado, é a irmã Rosane Costa Rosa, 57 anos, coordenadora da Pastoral do Migrante e também irmã missionária da Congregação Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo-Scalabriananas. Foi ela a pessoa por trás da organização do evento e um dos pontos convergentes entre diversos imigrantes.

A Congregação chegou a Mato Grosso do Sul há 47 anos, abrindo a primeira missão em Naviraí e sete anos depois em Campo Grande, com a Pastoral da Saúde e do Migrante. Trabalhou como funcionária no Centro de Apoio aos Migrantes (CEDAMI) antes de passar para a coordenadoria da Pastoral do Migrante da Arquidiocese de Campo Grande.



Três dias depois, em seu escritório e com uma trajetória de 32 anos como Irmã Missionária, irmã Rosane diz sobre a importância desses encontros, de promover a conversa e partilhar experiências, de se fazer presente para ninguém se sentir sozinho. "Todo mundo se encontrou, de diversas nacionalidades, não se sentem sozinhos e ouvindo a história um do outro fala pouco da própria." É a terceira vez que ela ajuda a coordenar o encontro.

Irmã Rosane pontua diversas características da imigração em Campo Grande atualmente, com os venezuelanos em primeiro lugar em número, tendo chegado em 2018 a 2020 e em segundo lugar os haitianos, que tiveram o seu maior número de migração em 2014 a 2017 com média de seis a sete mil haitianos em Mato Grosso do Sul, mas que hoje em dia, não mais.

A migração haitiana tem uma maior rotatividade, onde não permanecem no país por um longo período. Os Venezuelanos possuem perfis e categorias diferentes, a primeira leva são os que vieram trabalhar ou estudar há 15, 20 anos. A segunda se dá no início dos conflitos no país, estes venezuelanos, ao chegarem na fronteira, foram recebidos pela Operação Acolhida (iniciativa das Forças Armadas), em Mato Grosso do Sul, a cidade que mais recebe os venezuelanos que vem pela Operação Acolhida é Dourados. A terceira leva seriam os profissionais venezuelanos que, não vendo uma melhora na situação do país, migram para trabalhar em outros países, mas não trazem toda a família. A quarta e última leva são aqueles que chegam com a família inteira.

Os eventos da Pastoral do Migrante acontecem todos os anos, sendo dois por semestre, o Dia da Mulher Migrante, Semana do Migrante, Dia das Crianças Migrantes e a Celebração do Natal. "A gente tem autonomia na vida, mas não controle". Irmã Rosane, após nove anos missionando em Campo Grande, partirá para São Paulo, dar continuidade a seu propósito e diz viver muitas experiências de Deus, sente que teve a vida marcada por muitas pessoas e que segue a frase que a acompanha pela vida: Ser voz dos que não tem voz, tornar visível o invisível, amar aqueles que ninguém ama, ser ponte e ser presença. Em seu lugar na Pastoral, entrará Mirtha Carpio Díaz, 50 anos e venezuelana, ela e sua família moram em Campo Grande há 15 anos e há 12 foi naturalizada brasileira. Mirtha é bioclínica, chefe de cozinha e voluntária na Pastoral do Migrante, escolheu a cidade pela família ter amigos aqui e apesar de Campo Grande ser a primeira cidade em que morou ao chegar no Brasil, diz não ter vontade de sair daqui. "Pela fauna, pelo verde que é Campo Grande [...] Amo de paixão".


Políticas públicas


Outro orador que se levanta e participa da reunião dos migrantes e refugiados é César Augusto Silva da Silva, 50 anos, Doutor em Ciência Política, coordenador do curso da Faculdade de Direito (FADIR) da UFMS e com uma vida dedicada ao estudo de refugiados, qualidades que somente foram reveladas em momento posterior à reunião. Ali no encontro, César relatou ao círculo de participantes que é também um migrante. Em um segundo momento, em 26/05, em sua sala na FADIR/UFMS, revelou sua ligação com o tema de refugiados, por meio de estudo de dados e de políticas públicas para esse grupo social, além da sua própria vida como migrante.



César e a Professora de Economia Viviane Mozini, integrantes do mesmo Centro Universitário, perceberam que todo dia chegava estrangeiro de maneira clandestina. Normalmente, eram africanos ou asiáticos que estavam indo para os Estados Unidos, mas eram deixados por navios na grande malha portuária do Espírito Santo. Notaram a falta de política de acolhimento dessas pessoas. Os professores criaram um projeto de extensão em 2004, mesma época em que o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR/ONU) estava reabrindo o escritório no Brasil. A professora Viviane contatou o representante do ACNUR no Brasil, a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Advogada desse órgão, e foram feitos dois seminários vanguardista do tema, em 2004 e 2005.


Para o reconhecimento da qualidade de refugiado no Brasil, há uma série de requisitos em lei e outros administrativos, previstos pelo CONARE. Há mais de 50 mil refugiados em território brasileiro, mas em MS estão em número relativamente alto para os padrões brasileiros. A maioria é de venezuelanos, mas há sírios e congoleses. Tecnicamente, para ser refugiado, é necessário ter uma carteira que demonstre essa qualidade.


Os requisitos para ser considerado como refugiado no Brasil, segundo a Lei nº 9.474/1997, são:

Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.


O Professor analisa que os refugiados são extremamente dependentes, seja para tirar CPF, abrir conta em banco, o que se agrava pelo fato da maioria da população brasileira ser monolíngue. Ressalta a diferença entre o grupo de refugiados do grupo que tem visto humanitário. No caso dos haitianos, por exemplo, houve muito pedido de refúgio negado porque não havia comprovado perseguição humana. A imigração desse grupo normalmente ocorre em decorrência de furacão, ou terremoto. Em razão da presença de facções em determinadas localidades do Haiti, há dúvida das autoridades brasileiras se o país está em guerra ou não, de modo que o reconhecimento de refúgio para oriundos desse país não seja uma certeza. No Brasil, existem aproximadamente 1 milhão de pessoas na condição de imigrante. “Segundo dados do IBGE, dos quase 210 milhões de brasileiros, menos de 1% é migrante refugiado. Então eles tendem a ser invisíveis para a maior parte dos brasileiros. Quando eles aparecem, não há preparação para recebê-los”.


Segundo os dados mais recentes levantados pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), no mês de abril de 2023, as três nacionalidades que mais registraram solicitação de refúgio foram os venezuelanos, cubanos e nepaleses.

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