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Marcas de batalha

Milena Melo Caetano


O

relógio anunciava que já estava perto das duas da tarde quando Cleuza abriu o portão de sua casa já com um sorriso no rosto, estava vestida para ficar em casa: uma blusa preta e shorts, seu cabelo louro-escuro estava solto, caindo nos ombros. Atrás dela, os latidos da cadela da raça pastor alemão eram de curiosidade para o que havia na rua. Presas atrás de outra cerca, outros latidos mais finos, duas poodles. A casa é simples, escondida completamente por um portão sem visão para o interior, em uma das muitas ruas do grande bairro Aero Rancho, em Campo Grande. Foi asfaltada recentemente, ainda há muito o que ser feito, mas isso não parece em nada incomodá-la, ao menos, não o suficiente para tirar seu semblante tranquilo do rosto.

Cleuza Alves Carnaúba é esposa e mãe, além de uma sobrevivente. As paredes da casa, o tapete felpudo na sala, os pratos na pia para serem lavados, nada indica que houve uma guerra, mas de fato, uma batalha foi ganha. O inimigo em questão é sorrateiro e bem silencioso, chegou poucos meses depois de um grande alívio: todos seus exames estavam bons, grande notícia! Aos 36 anos gostaria de ter mais um filho e não havia impeditivos. O ano de 2017 estava logo ali, árvores de Natal montadas e preocupação com presentes foram deixadas de lado por um momento quando ela sentiu um caroço duro no seio, não havia nem três meses de seu último check-up em que tudo estava normal e por causa das festividades, o ultrassom acabou sendo marcado para janeiro do ano novo.

Logo o inimigo se revelou, o médico desconfiou de imediato, o formato do caroço era diferente, ele sabia que havia algo de errado e no fim se confirmou: câncer de mama. De 2017 até então, as coisas foram muito diferentes para Cleuza e sua família.

Agora, com 43 anos, contar sua própria história vem fácil aos lábios, ela costuma conversar com outras mulheres na mesma situação, dar testemunhos e entrevistas, falar é um dom, ela sente que tem um propósito maior, que Deus lhe usa para isso.


Foto: Milena Melo Caetano

Contando dessa forma, mostrando a batalha ganha, parece fácil esquecer o quão difícil foi, mas a realidade é que nesses seis anos desde que conheceu o seu diagnóstico, nada foi fácil e cada passo em direção à sua cura foi custoso, em todos os sentidos da palavra. Eduardo, seu esposo, é operador de câmera e seu convênio médico particular foi decisivo para o destino da esposa, entretanto, mais de 80% de seu salário é descontado todo mês.

Foram três anos na quimioterapia, a primeira sessão começou um dia depois de seu aniversário de 37 anos, na segunda-feira do dia 06 de março de 2017 e terminou no final de 2019. Ao total, foram 36 sessões de quimioterapia.

No início, Cleuza não conseguia entender porque via mulheres chegando e saindo do tratamento e ela continuava lá. A descoberta chegou no final de 2017 e foi tão surpreendente quanto assustadora.

No seu segundo PET-Scan, – um exame de imagem muito eficiente para a detecção de câncer – foi que ela decidiu abrir o primeiro exame que nem ela nem ninguém da sua família havia aberto em todo aquele tempo, apenas o médico.

“Eu fiquei em choque. Perguntei para o médico o que era aquilo e ele me disse ‘Você tinha [câncer] no fígado, no pulmão, na bacia, na axila e nos ossos”

Traçando uma linha do tempo, é possível entender o quão rápido o câncer se espalhou, foram dois meses entre o ultrassom que detectou o câncer na mama e o exame que apontou a metástase. O câncer de Cleuza foi agressivo ao extremo, se espalhou por toda a parte, o médico tinha lhe dado apenas seis meses de vida.


“Ainda bem que ele não me disse no primeiro momento, porque [o médico] tem que falar, mas foi Deus que não deixou, porque se eu soubesse, não iria fazer o tratamento, com seis meses de vida, eu iria aproveitar o que restava.”


Apesar do choque da descoberta, havia algo para celebrar: o exame que no início havia apontado tantos pontos de câncer, luzes amarelas espalhadas pelo corpo, com o novo exame não existiam mais, o câncer havia sumido, parecia um milagre.

Todo seu tratamento foi feito por hospitais particulares, e apesar da cobertura do convênio, o desconto no salário do marido foi difícil de repor, e a dívida contraída com um procedimento dificilmente conseguia ser paga completamente antes de outro procedimento cobrar mais uma vez. “Fiz muito jantar beneficente pra conseguir dinheiro, fiz rifa, passei muita necessidade, até esses tempos atrás fiz de novo”

Cleuza conheceu e fez amizades com muitas mulheres com câncer, várias delas sendo tratadas pelo SUS, algumas não resistiram e morreram. Tinham que esperar o remédio chegar, não tinha radioterapia, seu marido chegou a fazer matéria pra conseguir o tratamento para o Hospital do Câncer. “Não tem um tratamento completo pelo SUS, o câncer não espera”

O convênio médico que Cleuza recebeu foi determinante em sua vida. Se fosse pelo SUS, ela diz que não teria conseguido se curar. Entretanto, os problemas que envolvem o tratamento particular para famílias de baixa renda também são impeditivos muito fortes para a superação completa de um diagnóstico como o câncer. A cobertura do convênio envolve apenas o tratamento em si, mas existe um grande gasto invisível que as famílias precisam arcar sozinhas a fim de manter o paciente saudável para o tratamento nos hospitais e garantir a cura.


“Não é apenas o tratamento, é a alimentação, transporte privado, comer frutas e verduras, ter a imunidade alta”

Por ser muito invasivo, os pacientes que tratam o câncer precisam estar sempre com a imunidade alta, uma simples gripe pode ser letal, transporte público não é uma opção, assim como ambientes muito quentes, em dias assim, é preciso ar condicionado. Cleuza não pode andar por muito tempo, nem ficar muito perto do fogão. Sua depressão, que comumente afeta pacientes oncológicos, também gera mais um gasto no orçamento com psicólogo, psiquiatra e remédios, muitos remédios. O esforço físico, especialmente nos braços, também é um impeditivo, ela não consegue fazer muitas coisas sem ajuda.

Não há auxílio do governo, Cleuza precisa arcar com esses custos sozinha e os remédios são caros. Está tentando desde 2019 sua aposentadoria, os vários laudos médicos com o pedido apontam sua impossibilidade de trabalhar, mas a devolutiva que recebe de seus pedidos indeferidos é de que a renda de seu marido cobre suas necessidades. Eles analisam o salário bruto de Eduardo, mas os descontos são grandes. “Eu tenho os holerites, R$400,00 e poucos reais, quem vive com esse dinheiro?”.


Foto: reprodução do Instagram

Hoje Cleuza está curada do câncer, mas seu tratamento continua com os remédios. Em seus cálculos, foram pelo menos oito cirurgias, incluindo a que retirou seu útero como medida protetiva contra novos focos da doença. O sonho de ser mãe novamente ficou para trás. Pelo seu histórico, exames são feitos regularmente para que não volte, exames caros, como o PET-Scan que pode chegar a valores de R$4.000,00, e muitos outros que monitoram a sua saúde. As sequelas ficaram, atualmente tem dois cistos nos joelhos que prejudicam sua locomoção, ela precisa de fisioterapia, assim como outros problemas que surgem e desaparecem com o tempo.

Sente muita falta de coisas que para nós, são consideradas banais – de sair sozinha, andar pelo centro da cidade, pegar um ônibus ou limpar sua casa sozinha. Alguns dias são mais fáceis que outros, Cleuza normalmente é animada, mas a depressão muitas vezes a deixa por dias sem luz, quando se recupera, ela dá entrevistas, gosta de ajudar, contar sua história para as mulheres que estão passando pelo mesmo que ela, já inspirou várias delas, ajudou com o processo de passar pelas quimioterapias. Muitas entram em contato com ela pelas redes sociais. Mulher de fé, a todo momento ela responsabiliza Deus pela sua cura. O câncer que tanto a fez sofrer também é seu grande testemunho, a luta é diária, ainda luta pela aposentadoria e para arcar com os custos de vida, mas se sente acolhida e amada por sua família e amigos, sente que tem com quem contar, e sorri com isso.

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