Quatro horas é o tempo mínimo que Bruandra Guel leva para nascer em todos os sábados. Superação do passado e paixão pela arte de se montar são o que inspiram sua carreira
Bruna Melo e Eduardo Boiago
O primeiro passo é colocar a touca de peruca. Ela serve para diminuir o volume do cabelo e separá-lo do rosto na hora da maquiagem. Prepara a pele e esconde a sobrancelha para dar lugar a uma nova. Passa a base, depois o pó, o contorno e o blush. Sem demora, os extremos dos olhos e da boca e a sobrancelha são redesenhados. A roupa, a peruca e um enchimento para ganhar curvas são os últimos itens a serem postos. Assim nasce a Bruandra Guel, e o evento de hoje é no Ponto Bar.
Bruandra se preocupa com cada detalhe da sua maquiagem. (Foto: Bruna Melo)
Bruno Andrade Miguel — ou apenas Bru, como gosta de ser chamado —, de 27 anos, se divide entre o trabalho semanal em uma fábrica de biquínis e os jobs nas madrugadas de sábado, quando Bruandra se sustenta circulando sobre as rodas dos seus patins no Ponto Bar, espaço voltado para o público LGBTQIA+ em Campo Grande (MS).
Bruandra Guel é uma mistura do seu nome com seus sobrenomes: (Bru)no (Andra)de Mi(guel). A denominação escolhida pela drag surgiu a partir de uma tentativa de criação de um email, há muito tempo, antes mesmo da arte da montação (como ele chama a prática de se montar) ser uma hipótese.
Bru passou pelas tentativas de se tornar modelo e até ator — momento decisivo para ingressar, por dois anos, no teatro, onde também aprendeu a arte da palhaçaria. Além do dom da paciência para se maquiar por quase quatro horas e meia, a “rainha da bagaceira”, como se intitula nas redes sociais, tem um ateliê respeitoso. Artigos para compor a Bruandra são o que, definitivamente, não faltam.
Ao entrar, já topamos com a lateral do primeiro guarda-roupas da Bru. Na parede da frente, um grande espelho junto a uma espécie de penteadeira, onde fica a maioria das suas maquiagens. E são muitas: das cores mais óbvias às mais improváveis, com e sem glitter, caras e baratas. À direita, encostada na parede da janela, uma máquina de costura, onde o Bruno às vezes se arrisca produzindo peças para a Bruandra. Ao lado esquerdo da máquina, o segundo guarda-roupas, ainda mais cheio que o primeiro. À sua frente, um tripé onde são expostas todas as laces e perucas. Na parede da porta, uma estante enorme com tintas e outros pequenos artigos que podem ser usados para complementar o visual da drag. À direita dela, mais um móvel de prateleiras, para abrigar as dezenas de sapatos — a maioria com salto — que, junto com o cabelo, estão sempre chamando muita atenção.
Bruandra mostra a diferença entre perucas e laces. (Foto: Eduardo Boiago)
Os investimentos nos itens de montação da drag queen costumam ser altos. Mas, depois que Valdirene Menezes Andrade, mãe de Bruno, passou a frequentar a 7ª Igreja Adventista, seu armário ganhou muitas peças novas, aquelas que a religião não permite mais usar. Nem tudo cabe. Os saltos, às vezes, são pequenos demais, e as roupas são apertadas, mas Bruno sempre arruma um jeitinho de conseguir usar as peças em Bruandra.
O passado como ferramenta de estudo
Entre as várias camadas de base, pó e linhas de contorno, escutamos um sussurro na porta. É o pai de Bruno, Gilberto Miguel, que entra para dar um abraço no filho e se apresentar para nós. “Eu sinto orgulho”, diz calorosamente Gilberto sobre ter um filho que se monta.
Na família, surpreendentemente, nunca houve preconceito, nem quando Bruno assumiu se identificar como fluido — pessoa com identidade sexual variável, que flui entre o masculino, o feminino e, às vezes, o gênero neutro —, nem quando Bruandra surgiu na vida e no trabalho de Bruno, em 2020.
Quando Bru está montada, até a sua personalidade muda. A transição entre as duas pessoas é explicitamente perceptível durante a montação. Bruandra entra no corpo de Bruno como uma entidade sobrenatural. As aulas de teatro foram essenciais para que a Bruandra nascesse. “Foi lá que eu me soltei artisticamente. Eu era uma pessoa muito básica. Eu tinha muita arte dentro de mim, mas não colocava isso para fora.” O teatro o ajudou a enfrentar a timidez e no seu quadro de depressão, que foi associado, por muito tempo, ao fato de ser uma pessoa pertencente à comunidade LGBTQIA+. Mas ele nega que esses problemas tenham relação com a sua sexualidade ou identidade de gênero.
O processo de construção de uma drag queen exige que, antes do início da montação, o corpo se torne uma "tela em branco", para que os traços da persona possam ser construídos. (Foto: Eduardo Boiago)
A Bruandra foi um meio de refúgio e superação para Bruno. “Toda essa questão da depressão me ajudou a definir a minha drag. Eu gosto de levar risada porque eu sei o quanto é ruim você sentir tristeza. Então eu uso a minha arte para levar alegria às pessoas.” E completa: “Nosso passado é sempre ferramenta de estudo, a gente olha para trás e aprende.”
O primeiro a falar leva um murro
Decorridas quatro horas de montação, a definição do delineado e o afinamento de cada pequena linha de seu rosto são finalizadas. A maquiagem está impecável. É hora de começar a pensar nos trajes, que precisam combinar com a peruca azul, escolhida antes de iniciar a maquiagem dos olhos. Uma blusa branca com uma espécie de colete vermelho de cetim, uma saia de pregas estampada com azul, branco e vermelho, e uma luva também vermelha foram as roupas escolhidas para vestir hoje das nove da noite às duas da manhã, que é seu horário de trabalho na maioria dos finais de semana. Em cerca de mais 30 minutos a montação está finalmente pronta e um carro de aplicativo é chamado para levá-la até o local.
"Toda Sailor Moon", brinca Bruandra sobre sua montação. (Foto: Eduardo Boiago)
Bruandra nunca foi discriminada pelos motoristas. “É mais tranquilo do que eu imaginei que seria, mas é porque minha drag é muito artística a ponto de ser confundida com um palhaço, ‘Ah, mais um palhaço indo trabalhar’. E geralmente as drags se ofendem quando são comparadas a um palhaço [...]. Eu gosto de levar humor, então por que eu me sentiria ofendida?”. Quando seus trajes ultrapassam os limites do padrão, como quando está de biquíni ou maiô, o clima dentro do carro fica mais pesado, com aquele silêncio ensurdecedor. Mas ela brinca: “O primeiro a falar leva um murro”.
Paródia de Bruandra com o vestido da Lady Gaga, usado pela cantora no VMA em 2010. Foi uma das montações mais caras que Bru já produziu. (Foto: Instagram- @bruandra_guel)
Madrugada sobre rodas
Os patins que esperam a chegada de Bruandra no Ponto Bar vêm da sua infância. Andar de patins era o maior hobby de Bruno e ajudou no início de sua carreira como drag queen. Uma empresa procurava drags que soubessem patinar para distribuir panfletos de um evento, e ele se candidatou à vaga. Desde então, os sapatos com rodinhas nunca mais deixaram a carreira de Bru.
Hoje, os saltos servem só para anunciar sua chegada ao local de trabalho. Lá, eles são trocados pelas rodas, que ajudam a se locomover entre as pessoas. Junto a uma maquininha de cartão, ela realiza pedidos de drinks, entre o vuco-vuco do local, para que melhore a experiência de quem vai ao Ponto Bar, evitando a necessidade dos consumidores de esperarem em filas para serem atendidos.
Por muito tempo, ela foi bastante aclamada pelo diferencial dos patins durante seu serviço. Nas redes sociais, uma frase a identifica: “A drag dos patins”. Mas seu trabalho não se resume a somente isso. Bruandra também é DJ, aprendeu a mexer com mesas de som com um amigo, e às vezes é contratada para fazer suas performances. Mas nem sempre é fácil como parece. “O mais difícil não é aprender a tocar ou performar, é agradar a todo mundo”.
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