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Não merecemos o abandono

Pessoas LGBTQIA+ e a triste realidade da falta de afetividade e apoio na própria família, amigos ou amores


Carlos Bastos, Emilly Mira, Gabriel Gill


Foto: Unsplash


Um abraço caloroso, um beijo, um toque, palavras de apoio e encorajamento, gestos de cuidado, uma escuta atenta, empatia ou simplesmente: afeto. Essas características representam um sentimento necessário para todo ser humano se sentir acolhido e amado.

No dia-a-dia, os pais, amigos ou parceiros em relacionamentos amorosos exercem essa função de dar afetividade, mas e quando quem deveria ser essa  fonte de carinho, age de forma contrária e até nega esse sentimento pelo simples fato de você ser quem é? Essa é a realidade enfrentada por muitas pessoas LGBTQIA+ desde crianças ou quando precisam se assumir para a família ou círculo social. As boas sensações que um acolhimento familiar deve proporcionar dão lugar ao desamparo, medo e ao abandono.

A negligência do afeto é descrita por várias dessas pessoas como crueldade e traição por quem deveria dar cuidado. Em muitos casos, isso acontece desde criança, o que torna a situação ainda mais cheia de traumas que podem ser levados para toda a vida.


Desafetos

 

Marô, aos 23 anos, carrega consigo suas experiências como pessoa não binária, identificando-se com os pronomes ‘ele/dele’. Natural de Corumbá, desde cedo percebeu um sentimento diferente em si. Pertencente a uma comunidade evangélica, ainda na adolescência Marô se viu apaixonado pela baterista da igreja. No início, não tinha total compreensão do que estava acontecendo. Afinal, naquele tempo não havia referências que pudessem esclarecer o que estava sentindo, e uma conversa aberta com a família era proibida.


Aos 9 anos, seu pai descobriu sua sexualidade. Não brigou nem se afastou, mas temia que a mãe de Marô descobrisse. Isso aconteceu aos 15 anos, quando avisaram à mãe que Marô estava beijando uma menina. A partir daí, as coisas começaram a mudar. Uma reunião foi convocada, com toda a família presente. O que seria decidido ali? Optar pelo segredo! A mãe ocupava um cargo importante na igreja, e o escândalo seria vergonhoso.

Foto: Emilly Mira


As relações começaram a esfriar. Ele notou que sua mãe se distanciava, limitando a comunicação ao essencial. Sua irmã, antes próxima, agora evitava contato. Até os sobrinhos foram afastados. Qualquer comunicação externa era monitorada, com o celular e outras conexões sendo retirados.

 

Com 18 anos, ele havia assumido relacionamento com uma mulher. Na casa, moravam os irmãos, a mãe e um elefante branco na sala: seu relacionamento. Todos sabiam e percebiam, mas falar sobre o assunto era proibido, evitando assim qualquer aborrecimento “Ela não falava sobre o assunto e a gente vivia com esse elefante no meio da sala, sabe, que ninguém sabe, ninguém quer comentar sobre isso.”

Ainda aos 18 anos, a mãe de Marô o expulsou de casa. Ele acredita que tenha sido uma tentativa de afastá-lo, para evitar comentários na igreja e, quem sabe, levar consigo o elefante branco. Nesse período passou por uma crise depressiva severa, em que se viu desamparado.

E não são só as batalhas familiares que uma pessoas LGBTQIA+ pode vivenciar. Agatha, mulher transsexual de 18 anos e estudante de Psicologia da UFMS, percebe a questão do abandono afetivo nos relacionamentos amorosos que teve.


“Eu tive inúmeras relações com pessoas de diferentes gêneros, homens e mulheres. A maioria dos homens sempre teve algum tipo de receio em relação ao meu corpo, à minha personalidade ou à maneira como me porto… meus relacionamentos com homens heterossexuais foram diferentes porque sempre me tratavam apenas como se eu fosse um objeto sexual”.





Agatha, 18 anos, relata suas vivências enquanto mulher trans. Foto: Arquivo Pessoal


Em uma relação amorosa, a troca de afeto e reciprocidade parecem ser o básico, contudo a realidade é outra. Francis, homem trans, artista visual, sente que é imposta uma condição de inferioridade, privação de afeto, ou exigência de sigilo nessas relações.

“Eu tenho um histórico de ser invalidado em amizades e relações amorosas, acabo sempre ocupando uma posição desigual, como se eu tivesse que cumprir uma função pras outras pessoas, dar suporte, ajudar a lidar com qualquer B.O. que aparecer, para ter em troca algum afeto, só que um afeto que nunca é garantido, sempre existe uma ameaça de ser deixado caso eu não esteja disponível para a pessoa o tempo todo.”

Para ele, na necessidade desse sentimento, muitas pessoas trans acabam “aceitando as migalhas” para continuar a relação. “Todo mundo quer afeto, todo mundo quer validação, apesar da presença dessas pessoas, as relações desse tipo não tem profundidade nem confiança, é tudo muito frágil e ameaçador, e no fim a solidão é constante”.

Uma das características do abandono afetivo é a falta de participação na vida do ente em questão, e a negligência e desinteresse no cuidado com ele. Marô conta que foi necessário um acompanhamento psicológico para de alguma maneira suprir a falta que esse apoio familiar lhe fez, sentiu como se a mãe tivesse encontrado um “pretexto” para mascarar o preconceito com a sexualidade e para não estar mais em sua companhia.


As marcas do abandono afetivo LGTBQIA+


“Ansiedade, depressão, síndrome do impostor e até pensamentos suicidas são alguns dos impactos do abandono e exclusão do círculo social em uma pessoa LGBTQIA+”, explica João Vilela, psicólogo e coordenador do Instituto Brasileiro de Tansmaculinidades de MS e da comissão da gênero e diversidade do Conselho Regional de Psicologia do MS.


A negligência do afeto e do acolhimento, bem como a falta de acesso a serviços públicos, expulsão de suas residências e humilhações, por exemplo, são categorizadas como  situações de microviolência em alguns relatórios de dados por não se tratar da violência física em si. Contudo para quem as sente na pele, as consequências são catastróficas.



João Vilela, psicólogo, lamenta as consequências da falta de apoio familiar em pessoas LGBTQIA+.  Foto: Kadu Bastos 


O psicólogo dá um exemplo em que pessoas LGBTQIA+ desde criança tendem a exercer uma pressão excessiva em si mesmas para controlar seus modos de ser e expressar. Pensamentos como “não posso agir desse jeito”, “não posso ser muito afeminado”, “minha família não vai me aceitar se eu for assim” surgem e contribuem para a piora do estado de saúde. “Essa privação de ser vivenciada por essas pessoas é caracterizada como estresse pós-traumático em alguns relatórios de dados, ou seja algo que é sofrido por militares depois de guerra, por exemplo",  destaca João, trazendo a dimensão desses impactos.

“Essas dinâmicas vão nos adoecendo enquanto comunidade, me adoecem enquanto pessoa, me fazem ser absurdamente ansioso e tiram a minha capacidade de sentir sem questionar. De tanto passar por situações assim, eu fui perdendo a minha espontaneidade, ficando autoconsciente de um jeito neurótico e paranoico” diz Francis sobre suas  vivências de abandono.

Com o objetivo de traçar dados mais específicos sobre os impactos relacionados à saúde mental da população LGBTQIA+,  a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) revelou que 89% das pessoas trans no Brasil relataram sintomas de depressão, em grande parte devido à discriminação e à violência. Para a American Psychological Association, indivíduos LGBTQIA+ são quase três vezes mais propensos a sofrer de depressão em comparação com a população geral.

O psicólogo também explica que os problemas que o abandono gera se juntam como uma bola de neve. “Quando há essa exclusão familiar, muitos LGBTQIA+ acabam tendo que trabalhar, porque tem que sair de casa, tem que ter sua independência muito cedo. Acabam evadindo da escola, justamente porque a escola também é um ambiente violento. Na escola tem lá a fila dos meninos, das meninas, e aí a pessoa LGBT não sabe em qual fila vai entrar, né? Você é uma pessoa trans e agora eu queria estar naquela fila, mas eu não posso estar naquela fila”, detalha João Vilela.

Essa violência no ambiente escolar foi evidenciada num levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) que apurou que 73% dos estudantes LGBTQIA+ sofreram algum tipo de agressão verbal ou física na escola. Aqueles que enfrentam rejeição familiar são 8,4 vezes mais propensos a tentar o suicídio e 5,9 vezes mais propensos a sofrer de depressão severa.

Agatha conta que no início, sua família tinha dificuldade em aceitá-la e que foi um choque para todos quando disse que era trans, mas com o tempo passou a ser mais acolhida. Ela ressalta que sua família ainda está se acostumando a utilizar os pronomes corretos e a chamá-la pelo seu nome.

Ao falar sobre sua experiência de abandono afetivo, Agatha compartilha uma vivência pessoal marcada por ressentimento. Em um relacionamento não definido com um rapaz, ela se sentiu profundamente abandonada quando o vínculo chegou ao fim sem qualquer explicação. A falta de diálogo e a sensação de não ser reconhecida como pessoa foram especialmente dolorosas, algo que ela associa ao fato de ser trans. Essas reflexões a levam a concluir que as relações afetivas de pessoas trans são frequentemente atravessadas pela percepção externa de sua identidade.

Os relatos de Agatha ecoam um desafio comum enfrentado pela comunidade trans em suas interações pessoais e sociais. A persistência dessas barreiras afetivas e emocionais ressalta a necessidade contínua de compreensão e respeito às identidades diversas, especialmente dentro dos contextos familiar e escolar.

Além da rejeição familiar, o abandono afetivo LGBTQIA+ também se manifesta nas interações sociais e na busca por suporte emocional fora do ambiente familiar. A discriminação e o preconceito ainda presentes em muitos contextos sociais podem dificultar a construção de redes de apoio seguras e acolhedoras para indivíduos LGBTQIA+. Isso pode resultar em sentimentos de isolamento e solidão, ampliando os impactos negativos sobre o bem-estar mental. Enquanto continuamos a avançar na luta pelos direitos e pela aceitação plena, é crucial reconhecer e abordar o impacto devastador do abandono afetivo na comunidade LGBTQIA+.

Em depoimento para essa reportagem, Marcos Vinicius de 27 anos [nome fictício para preservação de identidade] quis compartilhar seu relato como homem gay que teve uma vivência difícil, marcada por abusos e abalos.

 

Confira o áudio do relato de Marcos


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