Heranças paraguaia, árabe, japonesa e indígena estão sendo minimizadas no estado
Giovanna Montoso, Juliene Melo e Letícia Dantas
Para as demais localidades brasileiras, Mato Grosso do Sul pode ser sinônimo de agronegócio e música sertaneja, mas o estado vai além desses símbolos. Aqueles que decidem mergulhar na história do MS, ou quem já nasceu imerso nela, encontram na construção do estado pantaneiro a riqueza da pluralidade de etnias. Árabes, Indígenas, Japonês e Paraguaios são os que mais influenciaram as identidades sul-mato-grossenses. Com essa vasta diversidade cultural, não é justo minimizar certas culturas e valorizar apenas uma ou duas.
O geólogo com especialização em Produção Cultural e mestre em Comunicação Pedro Ortale, ressalta que a produção musical sertaneja envolve vários aspectos como a forma de se vestir ou de se alimentar. “Isso é super importante. Está totalmente relacionado, inclusive, com a formação da nossa identidade sul-mato-grossense, digamos assim, a exemplo do quebra torto pantaneiro”. O quebra torto é uma iguaria da culinária de MS, uma tradição principalmente na área pantaneira. Arroz carreteiro com ovos fritos logo no café da manhã, para fornecer a disposição necessária aos peões que apartam o gado.
A homogeneização estética não permite que exista uma diversidade. Para Pedro Ortale, o papel da política pública é descobrir novos mercados mais generosos e democráticos.
Outras heranças
Em 2020, aproximadamente 130 imigrantes da Síria, solicitaram o reconhecimento da condição de refugiado no Brasil, segundo o relatório Dados Consolidados da Imigração no Brasil 2020, realizado pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra). Além disso, aprovado por lei, MS comemora no dia 22 de Novembro, o Dia da Comunidade Libanesa.
Segundo Lenita, a partir de 1920 ocorreram ondas de imigração em todo o Brasil. Campo Grande é uma cidade formada por imigrantes de várias ondas. A globalização mostra que a imigração se torna mais fácil de várias maneiras. “Essa migração vai formar a cidade, principalmente essa nossa região aqui, principalmente Campo Grande.”, complementa.
O comerciante libanês do centro de Campo Grande, Salem Ali Akra, afirma que o país não tem povo original. “Os índios são donos daqui. Então, todo mundo veio por meio da colonização, várias etnias como os holandeses, portugueses, alemães, italianos. Aí veio também a imigração árabe - do Líbano começou desde 1880, mais ou menos 144 anos”.
Salem vive há 34 anos no Brasil. Foto: Giovanna Montoso
Segundo dados históricos da Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul (SED), os primeiros registros de Libaneses, Sírios e Árabes datam do século XX. Esses imigrantes vieram pelo Uruguai até a Bolívia, passaram por Corumbá e se estabeleceram na capital. Com forte perfil empreendedor, eles se estabeleceram como comerciantes. De acordo com Salem, essa construção foi principalmente no centro. “Esse início da rua 14 de Julho é quase 100% árabe. Só que com o tempo, os filhos foram entrando em outras profissões”.
Essa é uma visão compartilhada pela professora e bailarina de dança árabe, Nidal Abdulahad. Para ela, um dos traços mais marcantes que continuam existindo na cidade é o comércio. “Você pode ver ali na rua 7 de setembro as confeitarias árabes, as lojas ali pela 14, ali na Calógeras”.
Porém, apesar de terem contribuído de forma significativa, alguns apagamentos são evidentes. Durante a entrevista, Salem citou o fim do Clube Libanês, que funcionava na rua Dom Aquino. O espaço foi construído ao longo de dez anos, entre 1952 e 1962. Funcionava como um lugar de valorização da cultura e de encontro entre a comunidade. Atualmente fechado, esse legado se perdeu, e de acordo com Salem alguns encontros acontecem na Mesquita de Campo Grande, localizada na Vila Planalto, ou na Igreja Central.
Nidal comenta que os principais desafios em relação à cultura é poder deixar ela presente, seja semanalmente ou mensalmente, para que as demais pessoas tenham acesso. Ela relembra que acontecia a Festa das Nações, em que a comunidade libanesa marcava presença cultural por meio de gastronomia, dança e música.
Ela ainda complementa que os eventos que eram organizados pela Colônia Libanesa foram sendo perdidos ao longo dos anos. “Nós temos em novembro, a independência do Líbano, mas não se tem comemorado há muitos anos, devido a várias questões religiosas e políticas que estão acontecendo”.
Um evento que a deixou feliz foi a realização da Festa das Nações Amigas, em maio deste ano, quando ocorreu a junção de todas as colônias de imigrantes aqui da capital sul-mato-grossense. “A maior dificuldade que a comunidade libanesa tem é um espaço para que isso seja mostrado para a população. Então tivemos uma festa bem linda”.
Além de visibilidade, o abandono cultural geracional é um problema
Salem acredita que essa perda cultural também vem do ambiente familiar, pouco relacionado com a vinda para o Brasil. Para ele, é necessário ensinar a tradição desde a infância. “Eu não sei se com o tempo essa cultura se fundiu dentro da brasileira. A comunidade sumiu dentro da cultura brasileira”.
Para Nidal, a nova geração não está se perdendo, apenas não está atenta às questões relacionadas à cultura. Ela afirma que são pessoas que são criadas com costumes 100% brasileiros, e com o passar do tempo, cada vez menos famílias vão estimular os filhos dentro da cultura. “Então não é que não haja uma preservação, mas ela diminuiu muito”.
Herança indígena
Essa questão geracional é notada pelo estudante do curso de Farmácia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Jerri Candido Pereira, natural de Aquidauana da Taunay Ipegui (TI) Aldeia Água Branca. Para ele, a influência das redes sociais tem sido uns dos principais fatores.
“Na minha aldeia estão trazendo muito o funk, o modo de se vestir e o modo de se falar. Eu não tenho nada contra. Mas isso, para mim, está deixando a nossa cultura para trás. Nem a nossa própria língua eles não estão falando, estão falando mais gírias”.
Para Jerri, muitas vezes em razão da influência, alguns indígenas não são reconhecidos pelas suas características originárias. Foto: Juliene Melo
A historiadora Lenita Calado comenta que “desde que o Brasil foi invadido pelos portugueses existiam muitos indígenas na região. Nós desde sempre somos formados por pessoas que chegaram aqui”. Segundo dados divulgados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI/MS), a população indígena no MS é composta por oito etnias: Guarani, Kaiowá, Terena, Kadwéu, Kinikinaw, Atikun, Ofaié e Guató.
Os indígenas estão presentes na formação da cultura sul-mato-grossense, por conta disso, o estado tem uma grande produção de artesanato. Por exemplo, a cerâmica Terena, que foi tombada como patrimônio imaterial do estado, o artesanato Kadiwéu e os Bugres de Conceição.
Calado afirma que Campo Grande recebeu imigração, e isso é um fato que faz parte da construção da cidade, porém também houve impactos negativos. “Além dos povos indígenas que aqui já estavam, eles foram afetados por essa imigração, acarretando a diminuição, e o afastamento”.
A Casa do Artesão de Campo Grande, além do Memorial Indígena na Aldeia Urbana Marçal de Souza, bairro Tiradentes, são espaços de visitação na capital. Porém, em meio à necessidade de reconhecimento enquanto sujeitos essenciais da formação da cidade, muitos se veem deslocados dos espaços que pertencem a eles.
“A gente deixa nossas casas, as nossas famílias, a gente vê como tudo é novo para nós. Ficamos perdidos, só que no meu caso eu nunca vou deixar aquilo que aprendi na aldeia, eu sempre vou levar comigo as minhas características, principalmente a língua materna. E a minha identidade e eu vou levar para sempre”, reafirma Jerri.
Hermanos vizinhos
Estado fronteiriço, o Paraguai faz divisa com os municípios de Bela Vista, Coronel Sapucaia, Mundo Novo, Porto Murtinho, e Ponta Porã. O Mato Grosso do Sul possui influências culturais como a chipa, sopa paraguaia, e até mesmo o chamamé que tem origem no gênero musical guarani. Apesar disso, a diluição também ocorre com a cultura paraguaia e muitas vezes, os imigrantes enfrentam situações adversas.
A coordenadora da Colônia Paraguaia, Valeria Rojas, lamenta os desafios enfrentados pelos imigrantes. “Às vezes, por vergonha ou medo de julgamentos, eles escondem que são paraguaios”. Com dados divulgados pela Polícia Federal, os residentes no estado oriundos do país vizinho chegaram à marca de 9.789. A coordenadora ainda complementa, que espaços de valorização como a Colônia são essenciais para manter essa cultura viva e promover essa integração cultural com a cidade.
Valeria Rojas afirma sentir orgulho de sua origem paraguaia. Foto: Giovanna Montoso
A música cantada por Almir Sater, cantor campo-grandense de origem árabe, chamada “Sonhos Guaranis”, com características pantaneiras, relata essa influência nas produções.
“E às vezes me deixa assim; Ao revelar que eu vim; Da fronteira onde o Brasil foi Paraguai.”
Símbolos paraguaios, a harpa, o violão e a cuia de tereré marcam a entrada no pátio da Associação Paraguaia. Foto: Giovanna Montoso
O consumo da erva-mate no estado é um costume estabelecido pelos indígenas paraguaios. Atualmente, um dos principais consumos dos sul-mato-grossenses é uma herança que começou nas classes baixas, mas muitos esquecem as raízes que deram origem a essa tradição. Ao longo de toda cidade, seja em bairros mais periféricos ou no centro, pontos de comércio da iguaria são encontrados.
O chamamé está inserido na cultura sul-mato-grossense. A cidade morena foi instituída, em 2022, como capital nacional do gênero, além de ter sido estabelecida como patrimônio imaterial do MS. Délio e Delinha, Zé Corrêa e Dino Rocha são nomes reconhecidos.
Arigatô aos que aqui chegaram
O estado possui aproximadamente 30 mil descendentes de japoneses, sendo a terceira maior colônia do Brasil. A Feira Central é um retrato dessa história de imigração japonesa na capital. A maioria oriunda da ilha de Okinawa, tem o sobá como o legado mais forte.
A Feira Central está localizada na Esplanada Ferroviária em Campo Grande desde 2004. Foto: Giovanna Montoso
Para Eduardo Kanashiro, presidente da Associação Okinawa na capital, os primeiros imigrantes que chegaram, segundo os assentamentos históricos, são de 1914, com o término da construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. “A Cultura Okinawana é respeitada e tem seu espaço, pois não é uma cultura recente em nossa cidade”.
Os principais desafios apontados são a conscientização e a valorização entre os próprios descendentes de que é um costume dos antepassados e que são transmitidos de geração em geração. “Temos o dever de preservar e divulgar para não apagar a história.
O sobá tornou-se patrimônio cultural imaterial de Campo Grande, em 2006, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Foto: Giovanna Montoso
O calendário de ações da Associação começa com a Festa do Ano Novo em janeiro; o dia do Sanshin em março; o dia das mães em maio; a tradicional festa junina em junho; o aniversário de fundação da associação em setembro. Nesses eventos ocorrem apresentações artísticas com danças, sanshin, taikô, karatê e karaokê.
Para ele “quem é visto, é lembrado”. Então, com frequência, a Associação aceita convites para apresentar a cultura, para eles é uma missão de não a deixar morrer. “Temos o nosso espaço e reconhecimento, e temos que manter esse propósito”. Hoje, a Associação Okinawa, conta com 498 famílias associadas, dos quais cerca de 20% de outras origens e etnias, envolvendo mais de duas mil pessoas, entre avós, filhos, netos, bisnetos.
Pedro Ortale ressalta que o papel das políticas na promoção e preservação das diversas culturas na capital do estado é fundamental pois realiza uma oposição ao processo homogeneizante da indústria cultural. O que garante o acesso à diversidade da produção artística e valorização dos bens materiais e imateriais.
“Olha a Calógeras, com todos aqueles prédios caindo. Aquilo ali é patrimônio cultural. Veja a Ferroviária, quando tiraram os trilhos de Campo Grande com uma consulta absolutamente tendenciosa, estavam destruindo parte da memória coletiva e não se fez absolutamente nada, apesar desses bens estarem tombados”.
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