top of page

RaĆ­zes de Okinawa

  • lauras05
  • 22 de jun. de 2023
  • 6 min de leitura


Ana Beatriz Leal


Kasato Maru, - o navio russo utilizado como permuta de guerra - transformado no primeiro navio de imigrantes vindo da Terra do Sol Nascente, saiu de Kobe, na baĆ­a de Osaka (JapĆ£o). Passou pelas Ć”guas intercontinentais por 52 dias atĆ© chegar Ć  costa marĆ­tima brasileira, no porto de Santos, em 18 de junho de 1908.

ApĆ³s quase 115 anos do marco inicial da imigraĆ§Ć£o japonesa ao Brasil, a comunidade nipo-brasileira cresceu e se multiplicou conforme o tempo, fomentando seus costumes e tradiƧƵes. Atualmente, os descendentes jĆ” formam a maior colĆ“nia japonesa fora do JapĆ£o, com quase dois milhƵes de pessoas vivendo em diferentes estados brasileiros, de acordo com o Governo do Estado de SĆ£o Paulo. Em decorrĆŖncia da ferrovia que ligava Bauru (SP) a CorumbĆ” (MS), em 1910 quase 800 imigrantes japoneses (40% okinawanos) chegaram a Campo Grande e, hoje em dia, Mato Grosso do Sul conta com a terceira maior colĆ“nia japonesa no Brasil e uma rica tradiĆ§Ć£o do arquipĆ©lago de Okinawa.

Muito do que se tem hoje como registros da cultura Nikkei (descendentes nascidos fora do JapĆ£o e japoneses que vivem no exterior) deu-se por meio de memĆ³rias e histĆ³ria oral, passadas de geraĆ§Ć£o para geraĆ§Ć£o. Esse legado estĆ” presente em inĆŗmeras atividades que se instalaram no dia a dia sul-mato-grossense.

A AssociaĆ§Ć£o Okinawa de Campo Grande Ć© uma organizaĆ§Ć£o que objetiva a promoĆ§Ć£o social, cultural e assistencial Ć  comunidade okinawana no estado de Mato Grosso do Sul, com a intenĆ§Ć£o de fomentar os costumes do arquipĆ©lago e resgatar suas origens. A instituiĆ§Ć£o Ć© repleta de sĆ­mbolos e objetos clĆ”ssicos, desde o shishimai (traje da tĆ­pica danƧa do leĆ£o) atĆ© o tradicional violĆ£o sanshin pendurado na parede. A associaĆ§Ć£o conta com um salĆ£o caracterĆ­stico para as apresentaƧƵes e mobiliza artes vocais e karaokĆŖ, danƧas clĆ”ssicas e folclĆ³ricas, aulas de instrumentos tĆ­picos, artes marciais originĆ”rias como o karatĆŖ e ensino da LĆ­ngua Japonesa-Okinawa.

A histĆ³ria da AssociaĆ§Ć£o retrata, de forma inquestionĆ”vel, a prĆ³pria histĆ³ria da ImigraĆ§Ć£o Japonesa e, ainda, a prĆ³pria histĆ³ria de Campo Grande.

Nas famĆ­lias orientais e, principalmente, nas japonesas, Ć© uma tradiĆ§Ć£o milenar o culto aos antepassados. A valorizaĆ§Ć£o da tradiĆ§Ć£o nĆ£o Ć© diferente nos descendentes de Okinawa. O sensei (professor) HĆ©lio Arakaki pratica karatĆŖ hĆ” 46 anos. A estudante Kris Tokeshi toca taiko, tambor japonĆŖs, desde seus nove anos. O feirante Tadashi Katsuren cresceu acompanhando os negĆ³cios da famĆ­lia e agora administra a barraca de sobĆ” de sua mĆ£e. Os trĆŖs campo-grandenses, mesmo sendo pessoas distintas e de diferentes geraƧƵes, estĆ£o interligados pelo mesmo elo: todos sĆ£o sanseis, descendentes da terceira geraĆ§Ć£o okinawana.

Cultivar luta, mĆŗsica e culinĆ”ria de Okinawa sĆ£o representaƧƵes de uma memĆ³ria, um estado de espĆ­rito e uma histĆ³ria de vida de um povo.



Caminho das mĆ£os vazias


Com seus 15 anos, o jovem campo-grandense HĆ©lio Arakaki conheceu uma pessoa que se propĆ“s a ensinar karatĆŖ no quintal de casa e se interessou pela arte marcial. Pouco tempo depois, chegou Ć  cidade morena um sensei que vinha do JapĆ£o e trazia um mĆ©todo que foi iniciado na dĆ©cada de 1930, em Okinawa. Com sua tĆ©cnica de luta desarmada, utilizando sĆ³ o prĆ³prio corpo como ferramenta, Yoshinori Okumoto trouxe o Karate-Do Kenshi-Kai para Mato Grosso do Sul.

HĆ©lio conta que comeƧou no karatĆŖ um pouco mais tarde, mas que a cultura japonesa sempre foi muito forte na sua famĆ­lia em funĆ§Ć£o dos seus avĆ³s, originĆ”rios de lĆ”. O avĆ“ cantava e tocava o violĆ£o de Okinawa, Sanshin, enquanto a avĆ³ ensinava a danƧa folclĆ³rica de Okinawa. "Tive muita influĆŖncia nas festas e atividades, a famĆ­lia sempre estava fazendo apresentaƧƵes. Eu acompanhei tudo isso em casa!ā€. O carateca ressalta a importĆ¢ncia de cultivar essa cultura antiga em outro lugar e outro tempo, para manter vivas as tradiƧƵes.



ApĆ³s 46 anos desse inĆ­cio, o sensei Arakaki, hoje com seus 61 anos de idade, leciona nĆ£o sĆ³ a arte marcial para seus pupilos, mas tambĆ©m a ĆŖnfase na formaĆ§Ć£o de cidadĆ£os saudĆ”veis, com posicionamentos Ć©ticos e morais, Ćŗteis Ć  sociedade e capazes de viver em harmonia. Na parede do dojo (local onde treinam artes marciais) hĆ” pequenos quadros que carregam uma grande histĆ³ria de mestres inspiradores: sensei Gishin Funakoshi, fundador do Karate Shotokan (estilo que sensei Arakaki segue atualmente) e sensei Juichi Sagara, um dos introdutores do Karate Shotokan no Brasil, com quem se formou faixa preta e Ć© discĆ­pulo direto. ā€œO karate enquanto caminho espiritual, o "DO" (caminho) enfatiza o aperfeiƧoamento tĆ©cnico e ao mesmo tempo o aperfeiƧoamento enquanto ser humanoā€ assegura HĆ©lio, agora chamado de sensei pelos seus prĆ³prios alunos no Dojo Muryokan Karate Shotokan.


Te=MĆ£o

Do=Caminho [1]

ē©ŗꉋ道


No ritmo do tambor


Nas tardes de sĆ”bado, o grupo de jovens nipo-brasileiros campo-grandenses costuma se encontrar para ensaiar o taiko. O termo significa tambor e designa tanto o tipo de mĆŗsica quanto o instrumento utilizado na arte do Wadaiko, designaĆ§Ć£o que se refere ao estilo de taiko do JapĆ£o. Kris Tokeshi, 24 anos, Ć© estudante de Artes Visuais e instrumentista desde a infĆ¢ncia. Pratica taiko desde os 5 anos de idade, comeƧou no estilo okinawano e mais tarde, aos 9 anos, transitou para o wadaiko, com o instrumento no chĆ£o e os bachis (baquetas usadas especificamente para tocar esse tambor).

A famĆ­lia da Kris Ć© okinawana e japonesa. Okinawa tambĆ©m Ć© no JapĆ£o, mas pela histĆ³ria e diferenƧas culturais os dois grupos jĆ” tiveram muitos impasses, explica ela. Sua famĆ­lia materna Ć© de Ginowan (provĆ­ncia de Okinawa) e da Ilha de Tagoshima (JapĆ£o). JĆ” sobre a paterna, os registros foram perdidos juntamente com a trajetĆ³ria dos seus antepassados. A estudante reforƧa que a cultura oriental Ć© muito forte na sua casa e que isso proporcionou inĆŗmeras experiĆŖncias entre as tradiƧƵes, como tocar Shamisen (instrumento de corda japonĆŖs), taiko e danƧar Odori (danƧa tradicional japonesa). Kris comenta que isso Ć© muito nĆ­tido na rotina, seus hĆ”bitos comuns na verdade eram culturais, como tirar os sapatos para entrar em casa. "Coisas que eu achava normal e crescendo no Brasil vi que eram costumes japoneses, o verdadeiro choque cultural".

Kris reforƧa que Ć© essencial relembrar a tradiĆ§Ć£o dos nossos antepassados, independente de quando e onde, sempre cultivar o respeito e nĆ£o deixar os antecedentes para trĆ”s. ā€œLembrar os costumes e honrar o que foi repassado de bomā€, acentua a descendente.



Fotos: Ana Beatriz Leal

Feito de madeira maciƧa e couro, o taiko geralmente Ć© confeccionado Ć  mĆ£o por artesĆ£os japoneses


Taiko=Tambor

å¤Ŗ鼓




A ā€˜receita do sucessoā€™ Ć© de famĆ­lia


Tadashi Katsuren, 30 anos, trabalha atualmente administrando o ponto mais tradicional da feira central, a Barraca da Niria", de sua falecida mĆ£e. Assim como HĆ©lio e Kris, ele Ć© fruto da imigraĆ§Ć£o, e explica: "Os meus quatro avĆ³s sĆ£o de Okinawa, todos os meus sobrenomes sĆ£o okinawanos.ā€ Tadashi faz parte da diretoria da AssociaĆ§Ć£o Okinawa de Campo Grande e afirma que por volta de 80% dos imigrantes japoneses de Campo Grande vieram de Okinawa.

Seus avĆ³s foram os precursores do tĆ­pico prato do arquipĆ©lago, o sobĆ”, em Mato Grosso do Sul. Em 1965, abriram o negĆ³cio com a intenĆ§Ć£o de atender o pĆŗblico imigrante e para agradĆ”-los, a famĆ­lia Katsuren comeƧou com a receita: macarrĆ£o caseiro, pedaƧos de carne suĆ­na, cebolinha picada e omelete fatiado cobertos por um encorpado caldo de carne. ApĆ³s pouco tempo, fecharam para abrir um restaurante.

JĆ” em 1982, os pais de Tadashi voltam com a iguaria de seus avĆ³s, utilizando o nome de Barraca da NĆ­ria, nora do Hiroshi Katsuren, pois ela era 'a cara da barraca', como conta o feirante. Sua mĆ£e se orgulhava muito da repercussĆ£o do inĆ­cio da venda do sobĆ”. "NĆ³s fazĆ­amos o mesmo prato que meus avĆ³s fizeram e fazemos atĆ© hoje, a mesma base de receita e os mesmo temperos, na medida do possĆ­vel Ć© claro. De ā€˜65ā€™ pra cĆ” muda muita coisa" ri Tadashi.

A cultura japonesa, especificamente de Okinawa, Ć© muito forte na famĆ­lia Katsuren; O descendente toca taiko e fez karate por volta de 20 anos. "Uma boa parte de tudo que a gente faz de convĆ­vio e atĆ© dos nossos cĆ­rculos de amizade sĆ£o dentro da imigraĆ§Ć£o okinawana.ā€ Exemplifica citando a culinĆ”ria: ā€œA parte do sobĆ” como patrimĆ“nio imaterial de Campo Grande Ć© a prova viva de que a cultura okinawana perdurou na cidade e deixou sua marca."

*(Lei nĀ° 6.072 de agosto de 2018 institui o SobĆ” como prato tĆ­pico do municĆ­pio de Campo Grande - MS)



A cultura oriental de Okinawa apresenta-se um tanto diferenciada da cultura brasileira e ao mesmo tempo, um tanto relacionada a ela. Frente Ć s dificuldades do estabelecimento da primeira geraĆ§Ć£o de imigrantes japoneses no Brasil, compreender seu reflexo na sociedade, possibilita compreender sua identidade, sua histĆ³ria presente na regiĆ£o do Mato Grosso do Sul. Desde a educaĆ§Ć£o, a gastronomia, as artes e a economia, as influĆŖncias japonesas colaboraram para o desenvolvimento de Campo Grande. As raĆ­zes, uma vez estabelecidas e bem cultivadas, proliferam por muito tempo e geram Ć³timos frutos para aqueles que souberam cuidar.


  • alt.text.label.Facebook
  • alt.text.label.Instagram

Ā©2023 por TextĆ£o JornalĆ­stico. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page