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Raízes de Okinawa



Ana Beatriz Leal


Kasato Maru, - o navio russo utilizado como permuta de guerra - transformado no primeiro navio de imigrantes vindo da Terra do Sol Nascente, saiu de Kobe, na baía de Osaka (Japão). Passou pelas águas intercontinentais por 52 dias até chegar à costa marítima brasileira, no porto de Santos, em 18 de junho de 1908.

Após quase 115 anos do marco inicial da imigração japonesa ao Brasil, a comunidade nipo-brasileira cresceu e se multiplicou conforme o tempo, fomentando seus costumes e tradições. Atualmente, os descendentes já formam a maior colônia japonesa fora do Japão, com quase dois milhões de pessoas vivendo em diferentes estados brasileiros, de acordo com o Governo do Estado de São Paulo. Em decorrência da ferrovia que ligava Bauru (SP) a Corumbá (MS), em 1910 quase 800 imigrantes japoneses (40% okinawanos) chegaram a Campo Grande e, hoje em dia, Mato Grosso do Sul conta com a terceira maior colônia japonesa no Brasil e uma rica tradição do arquipélago de Okinawa.

Muito do que se tem hoje como registros da cultura Nikkei (descendentes nascidos fora do Japão e japoneses que vivem no exterior) deu-se por meio de memórias e história oral, passadas de geração para geração. Esse legado está presente em inúmeras atividades que se instalaram no dia a dia sul-mato-grossense.

A Associação Okinawa de Campo Grande é uma organização que objetiva a promoção social, cultural e assistencial à comunidade okinawana no estado de Mato Grosso do Sul, com a intenção de fomentar os costumes do arquipélago e resgatar suas origens. A instituição é repleta de símbolos e objetos clássicos, desde o shishimai (traje da típica dança do leão) até o tradicional violão sanshin pendurado na parede. A associação conta com um salão característico para as apresentações e mobiliza artes vocais e karaokê, danças clássicas e folclóricas, aulas de instrumentos típicos, artes marciais originárias como o karatê e ensino da Língua Japonesa-Okinawa.

A história da Associação retrata, de forma inquestionável, a própria história da Imigração Japonesa e, ainda, a própria história de Campo Grande.

Nas famílias orientais e, principalmente, nas japonesas, é uma tradição milenar o culto aos antepassados. A valorização da tradição não é diferente nos descendentes de Okinawa. O sensei (professor) Hélio Arakaki pratica karatê há 46 anos. A estudante Kris Tokeshi toca taiko, tambor japonês, desde seus nove anos. O feirante Tadashi Katsuren cresceu acompanhando os negócios da família e agora administra a barraca de sobá de sua mãe. Os três campo-grandenses, mesmo sendo pessoas distintas e de diferentes gerações, estão interligados pelo mesmo elo: todos são sanseis, descendentes da terceira geração okinawana.

Cultivar luta, música e culinária de Okinawa são representações de uma memória, um estado de espírito e uma história de vida de um povo.



Caminho das mãos vazias


Com seus 15 anos, o jovem campo-grandense Hélio Arakaki conheceu uma pessoa que se propôs a ensinar karatê no quintal de casa e se interessou pela arte marcial. Pouco tempo depois, chegou à cidade morena um sensei que vinha do Japão e trazia um método que foi iniciado na década de 1930, em Okinawa. Com sua técnica de luta desarmada, utilizando só o próprio corpo como ferramenta, Yoshinori Okumoto trouxe o Karate-Do Kenshi-Kai para Mato Grosso do Sul.

Hélio conta que começou no karatê um pouco mais tarde, mas que a cultura japonesa sempre foi muito forte na sua família em função dos seus avós, originários de lá. O avô cantava e tocava o violão de Okinawa, Sanshin, enquanto a avó ensinava a dança folclórica de Okinawa. "Tive muita influência nas festas e atividades, a família sempre estava fazendo apresentações. Eu acompanhei tudo isso em casa!”. O carateca ressalta a importância de cultivar essa cultura antiga em outro lugar e outro tempo, para manter vivas as tradições.



Após 46 anos desse início, o sensei Arakaki, hoje com seus 61 anos de idade, leciona não só a arte marcial para seus pupilos, mas também a ênfase na formação de cidadãos saudáveis, com posicionamentos éticos e morais, úteis à sociedade e capazes de viver em harmonia. Na parede do dojo (local onde treinam artes marciais) há pequenos quadros que carregam uma grande história de mestres inspiradores: sensei Gishin Funakoshi, fundador do Karate Shotokan (estilo que sensei Arakaki segue atualmente) e sensei Juichi Sagara, um dos introdutores do Karate Shotokan no Brasil, com quem se formou faixa preta e é discípulo direto. “O karate enquanto caminho espiritual, o "DO" (caminho) enfatiza o aperfeiçoamento técnico e ao mesmo tempo o aperfeiçoamento enquanto ser humano” assegura Hélio, agora chamado de sensei pelos seus próprios alunos no Dojo Muryokan Karate Shotokan.


Te=Mão

Do=Caminho [1]

空手道


No ritmo do tambor


Nas tardes de sábado, o grupo de jovens nipo-brasileiros campo-grandenses costuma se encontrar para ensaiar o taiko. O termo significa tambor e designa tanto o tipo de música quanto o instrumento utilizado na arte do Wadaiko, designação que se refere ao estilo de taiko do Japão. Kris Tokeshi, 24 anos, é estudante de Artes Visuais e instrumentista desde a infância. Pratica taiko desde os 5 anos de idade, começou no estilo okinawano e mais tarde, aos 9 anos, transitou para o wadaiko, com o instrumento no chão e os bachis (baquetas usadas especificamente para tocar esse tambor).

A família da Kris é okinawana e japonesa. Okinawa também é no Japão, mas pela história e diferenças culturais os dois grupos já tiveram muitos impasses, explica ela. Sua família materna é de Ginowan (província de Okinawa) e da Ilha de Tagoshima (Japão). Já sobre a paterna, os registros foram perdidos juntamente com a trajetória dos seus antepassados. A estudante reforça que a cultura oriental é muito forte na sua casa e que isso proporcionou inúmeras experiências entre as tradições, como tocar Shamisen (instrumento de corda japonês), taiko e dançar Odori (dança tradicional japonesa). Kris comenta que isso é muito nítido na rotina, seus hábitos comuns na verdade eram culturais, como tirar os sapatos para entrar em casa. "Coisas que eu achava normal e crescendo no Brasil vi que eram costumes japoneses, o verdadeiro choque cultural".

Kris reforça que é essencial relembrar a tradição dos nossos antepassados, independente de quando e onde, sempre cultivar o respeito e não deixar os antecedentes para trás. “Lembrar os costumes e honrar o que foi repassado de bom”, acentua a descendente.



Fotos: Ana Beatriz Leal

Feito de madeira maciça e couro, o taiko geralmente é confeccionado à mão por artesãos japoneses


Taiko=Tambor

太鼓




A ‘receita do sucesso’ é de família


Tadashi Katsuren, 30 anos, trabalha atualmente administrando o ponto mais tradicional da feira central, a Barraca da Niria", de sua falecida mãe. Assim como Hélio e Kris, ele é fruto da imigração, e explica: "Os meus quatro avós são de Okinawa, todos os meus sobrenomes são okinawanos.” Tadashi faz parte da diretoria da Associação Okinawa de Campo Grande e afirma que por volta de 80% dos imigrantes japoneses de Campo Grande vieram de Okinawa.

Seus avós foram os precursores do típico prato do arquipélago, o sobá, em Mato Grosso do Sul. Em 1965, abriram o negócio com a intenção de atender o público imigrante e para agradá-los, a família Katsuren começou com a receita: macarrão caseiro, pedaços de carne suína, cebolinha picada e omelete fatiado cobertos por um encorpado caldo de carne. Após pouco tempo, fecharam para abrir um restaurante.

Já em 1982, os pais de Tadashi voltam com a iguaria de seus avós, utilizando o nome de Barraca da Níria, nora do Hiroshi Katsuren, pois ela era 'a cara da barraca', como conta o feirante. Sua mãe se orgulhava muito da repercussão do início da venda do sobá. "Nós fazíamos o mesmo prato que meus avós fizeram e fazemos até hoje, a mesma base de receita e os mesmo temperos, na medida do possível é claro. De ‘65’ pra cá muda muita coisa" ri Tadashi.

A cultura japonesa, especificamente de Okinawa, é muito forte na família Katsuren; O descendente toca taiko e fez karate por volta de 20 anos. "Uma boa parte de tudo que a gente faz de convívio e até dos nossos círculos de amizade são dentro da imigração okinawana.” Exemplifica citando a culinária: “A parte do sobá como patrimônio imaterial de Campo Grande é a prova viva de que a cultura okinawana perdurou na cidade e deixou sua marca."

*(Lei n° 6.072 de agosto de 2018 institui o Sobá como prato típico do município de Campo Grande - MS)



A cultura oriental de Okinawa apresenta-se um tanto diferenciada da cultura brasileira e ao mesmo tempo, um tanto relacionada a ela. Frente às dificuldades do estabelecimento da primeira geração de imigrantes japoneses no Brasil, compreender seu reflexo na sociedade, possibilita compreender sua identidade, sua história presente na região do Mato Grosso do Sul. Desde a educação, a gastronomia, as artes e a economia, as influências japonesas colaboraram para o desenvolvimento de Campo Grande. As raízes, uma vez estabelecidas e bem cultivadas, proliferam por muito tempo e geram ótimos frutos para aqueles que souberam cuidar.


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