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Resistir para existir

Desigualdade ambiental faz com que grupos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e assentados sofram mais com a degradação do meio ambiente no Mato Grosso do Sul


Brunna Machado Brondani e Rebeca Rodrigues Ferro


Queimadas e seca extrema no Norte do país em outubro. Ciclones e enchentes devastadoras no Sul do Brasil e temperaturas ultrapassando os 40°C em todo o país no mês de setembro. Incêndios persistentes no Pantanal desde julho. Em menos de um ano todos esses eventos climáticos já assolaram o nosso país, o que evidencia os impactos da degradação ambiental. Porém, as consequências disso são desiguais. Os que se encontram nas situações mais vulneráveis e nas regiões mais precárias são os que menos contribuem para essas alterações e os que são mais afetados.

As mudanças climáticas atingem a vida de quem trabalha em contato com o meio ambiente. Para Rosana Sampaio, 53 anos, presidente do Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado (Ceppec), do assentamento Andalucia, em Nioaque, isso afeta a sua forma de sustento e a colheita de frutos nativos. "Um dos impactos sofrido nos assentamentos está diretamente envolvido com a produção de alimentos e a própria subsistência. Porque nós estamos vendo desaparecer os corpos de água e também a gente antes tinha condições de trabalhar um dia inteiro. Essas mudanças vão diminuindo a nossa resistência e a nossa sobrevivência no campo, nosso corpo já não está aguentando a temperatura".

Rosana Sampaio em uma apresentação do Ceppec no IV Simpósio de Frutos Nativos e Exóticos na UFMS. (Foto: Brunna Brondani)


Essas altas temperaturas são em decorrência do efeito estufa agravado pela emissão excessiva de dióxido de carbono (CO₂). O efeito em si é um acontecimento natural da Terra que permite a existência de uma atmosfera habitável. “Normalmente a gente associa isso como uma coisa ruim, mas, na verdade, sem o efeito estufa natural da Terra a gente não estaria vivo”, explica o professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Thiago Rodrigues, doutor especializado em dinâmica dos fluxos de água e CO₂ entre a superfície e a atmosfera.

Entre as várias causas da emissão excessiva de gases que aumentam o efeito estufa, as que mais se destacam em Mato Grosso do Sul são as queimadas/desmatamentos e a agropecuária, conforme o Sistema de Estimativa de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg). Essas ações não apenas contribuem para o desequilíbrio climático como também para a desigualdade ambiental. “Quando um incêndio acontece, como aconteceu no Pantanal, os impactos para as comunidades [tradicionais] são muito grandes. E para as mulheres dessas comunidades o impacto é ainda maior porque está muito relacionado ao dia a dia, ao cotidiano delas”, afirma Nathália Ziolkowski, socióloga ambiental e diretora da organização não governamental Ecologia e Ação (Ecoa).

Essa foi uma realidade vivenciada pela comunidade ribeirinha localizada na Área de Preservação Ambiental (APA) Baía Negra, em Ladário. Para a presidente da Associação de Mulheres Produtoras da APA Baía Negra, Virginia Paz, 52 anos, as consequências são ainda mais evidentes. As queimadas atingiram muitos lugares e causaram a destruição do bioma, o que gerou várias perdas de árvores nativas, cujos frutos são utilizados para a preparação de seus produtos, ocasionando uma queda relevante nas suas produções.

Não só as comunidades ribeirinhas são alvo das queimadas no Pantanal, mas as aldeias indígenas também. Para Rosaldo Souza, 49 anos, indígena da etnia Kinikinau e biólogo, as queimadas não são um acontecimento atual, em suas memórias é clara a imagem de todo o trabalho que realizava na infância para apagar os incêndios que ameaçavam queimar a sua casa. Comenta ainda que o desmatamento causado pelo fogo coloca em escassez os recursos naturais, sejam eles frutos nativos ou água, ainda que isso aconteça na maior planície alagável do mundo. “Quando se tira a vegetação, ela deixa a terra nua. Essa terra vem sendo trazida para dentro do rio e causa assoreamento. Eu vejo que isso tem afetado muito a vida das pessoas que dependem do rio, da água e da agricultura local ali de dentro das comunidades”.

Rosaldo Souza, formado em Ciências Biológicas pela UEMS e mestre em Desenvolvimento Sustentável pela UnB/CDS. (Foto: Brunna Brondani)


As atividades agropecuárias possuem uma parcela significativa de culpa no assoreamento dos rios, mas esse não é o único problema causado por essa atividade econômica. Mato Grosso do Sul é o sexto no ranking de estados que mais consomem agrotóxicos, com 5% de consumo, conforme apresenta a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Nathália afirma que a pulverização dessas substâncias com avião em lavouras próximas a acampamentos indígenas está causando impactos severos para eles. “O povo indígena que está na beira da estrada sofre diretamente o impacto. Quem sofre muito com isso hoje são os Guarani Kaiowá e já tem casos de morte por intoxicação de veneno. Então é uma zona de conflito muito grande”.

Para Rosana os efeitos são muito claros. Como produtora da agricultura familiar, baseada em uma produção sem uso de agrotóxicos ou degradação ambiental, ela explica o quão prejudicial o agronegócio pode ser. "Nós temos um modelo da produção de grãos que se denomina agro, eles conseguem causar um prejuízo irreparável para esse conjunto de vidas, desde os corpos de água até os polinizadores, os seres humanos e a fauna. Existe uma destruição causada por esse modelo que é inegável".


“Mesmo que tenha o rio não tem água” - Rosaldo Souza


A escassez de água é um fator que coloca em situação de risco todas as espécies que dela dependem. Esse problema não é só uma consequência das próprias ações humanas, como também é uma sequela das mudanças climáticas. O biólogo Rosaldo afirma ter tentado levar às comunidades indígenas do interior do estado um projeto de construção de hortas caseiras. Porém, esse plano não conseguiu ser aplicado, pois os moradores não sabiam se teriam acesso à água para conseguir as manter. “Muitos [indígenas] deixaram de plantar e de fazer suas lavouras, porque a seca se tornou um problema muito sério, mesmo dentro do Pantanal. Então quando você vê falar que o Pantanal está secando, tem gente que pensa ser mentira. Mas não, isso é uma verdade e é bem séria”.

Essa escassez também aflige Vera Lucia dos Santos, 41 anos, liderança da Associação e do grupo de Turismo de Base Comunitária no Quilombo de Furnas do Dionísio, em Jaraguari, pois todas as fontes de renda de sua comunidade necessitam da água para existir. "Os impactos que podemos ver aqui na comunidade é a visível diminuição da água do rio. Nosso rio está secando, ele já diminuiu muito a água".

Para além das questões econômicas, a falta de água é um problema que também causa sequelas nas relações culturais das aldeias indígenas. Para o Cacique Josias Jordão, 37 anos, da aldeia urbana Marçal de Souza, é um ato de apagamento cultural as aldeias indígenas dependerem de água encanada ou da trazida por caminhões pipa por não conseguirem acessar as fontes de água, seja por falta de chuva, seca severa ou qualquer outra causa decorrente das mudanças climáticas. “A falta de água hoje está sendo um caos muito grande, principalmente na região da aldeia Cachoeirinha. Na minha aldeia de origem, na aldeia Bananal, também não tem água, parece que a fonte secou. Esse ano está sendo muito difícil para a população do povo terena”.


Um olhar para essas comunidades


Como uma forma de lidar com as queimadas e proteger seu território dos danos causados por elas, a comunidade ribeirinha da APA Baía Negra possui uma brigada contra incêndios e uma patrulha ambiental. A produtora Virgínia explica que o problema em manter esses dois grupos de proteção ambiental é que faltam recursos suficientes. “A gente tem que correr atrás de muita coisa para conseguir ter isso, porque às vezes não tenho combustível ou carro disponível. Eu gostaria muito que o governo olhasse mais para o nosso lado, que ele não deixasse só as comunidades ribeirinhas resolverem o problema”.

Rosaldo Souza compartilha um pensamento semelhante. Ele explica que não há muito o que os indígenas possam fazer, pois eles possuem muito conhecimento sobre o meio ambiente, mas não conseguem impedir as catástrofes humanas que vêm de fora do seu território. No fim, os desmatamentos transformam as aldeias indígenas em pequenas ilhas de preservação. Para ele, a ajuda precisa vir de cima e se existe alguém que precisa fazer alguma coisa, é o governo.

Para a presidente do Ceppec, a falta de políticas públicas que disseminem informações sobre as mudanças e que atuem para reduzir os impactos, faz com que as pessoas acabem sofrendo mais. Ela ainda afirma que os produtores que usam agrotóxicos não estão cometendo crimes, pois as leis liberam o uso de compostos químicos para a manutenção da plantação. Porém, ela complementa deixando claro que sempre há como as pessoas tomarem decisões que podem mudar essa realidade. “Existem legisladores que autorizam a liberação desses agrotóxicos, tem uma cortina de fumaça vendando os olhos da sociedade que aceita, porque afinal de contas, somos nós quem validamos tudo isso na hora do nosso voto. Plantar é um grande ato, mas consumir é um ato ainda maior, porque ao consumir você salienta o modelo que você está muitas vezes questionando”.

Por mais que tenham medidas para minimizar os efeitos das causas e dos impactos das mudanças climáticas, o futuro ainda é incerto e causa medo nessas populações. Rosana Sampaio faz uma alusão sobre como as coisas vão ser se o ritmo de emissões não diminuir. "A gente está como bois num brete caminhando para o matadouro. Você não tem como voltar. Você não pode parar porque você é empurrado por uma manada. Se você parar é pisoteado e se você seguir em frente você sabe que o que te espera é a morte. Não tem outra expectativa se não houver mudanças de prática e de hábitos de vida."



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3 Comments


VITORIA RODRIGUES FERRO
VITORIA RODRIGUES FERRO
Nov 14, 2023

A reportagem aborda um tema muito importante com clareza e um grande desempenho. As várias fontes citadas, de pessoas diferentes, com histórias e vivencias diferentes, mas todas com o mesmo sofrimento em relação aos problemas que assolam o meio ambiente, são pontuais para dar luz a uma pauta tão invisibilizada que é a desigualdade ambiental. Parabéns!!

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SARAI DE OLIVEIRA BRAUNA
SARAI DE OLIVEIRA BRAUNA
Nov 14, 2023

É extremamente necessário dar visibilidade para assuntos de desigualdade ambiental, que acontecem a diversos anos no mundo. Essas pessoas sempre estiveram lá lutando. Parabéns pela ótima reportagem!

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Mariana Nascimento
Mariana Nascimento
Nov 14, 2023

A reportagem está muito boa!!!

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