Ana Beatriz Leal e Raíssa Rojas
Edmilson é parte artista, parte tapeceiro. Adora viajar e também é amigo de vários outros artistas. Em seus 27 anos, tinha fotos tão boas que, segundo ele, pediam para utilizar como modelo na gráfica. Além disso, Edmilson faz desenhos e pinturas, de paisagens em sua maioria, quando se recorda. Hoje em dia, com 84 anos, esse é um dos seus passatempos preferidos na Hotelaria Geriátrica “Aconchego da vovó”, que trata como especialidade idosos com demência.
Atualmente, o local funciona como moradia de 25 idosos, tendo início há aproximadamente 10 anos em outro endereço com o foco de ser uma casa de repouso para idosas, por isso o rosa marcante nas paredes. Com a demanda presente o espaço se abriu para idosos. A nutricionista Yule Patrícia faz parte da equipe de multiprofissionais do estabelecimento há sete anos. Ela explica a diferença dos sistemas de apoio na hotelaria. “Têm os que ficam aqui pelo plano de moradia e os que só passam o dia e vão embora na parte da noite, que fazem parte do sistema creche".
A Dona Alvina faz parte do segundo sistema, ou ela vem nos dias que precisam da ajuda dela, como conta. A filha a deixa cedo quando sai para trabalhar, pois passa o dia inteiro dando aulas e não tem possibilidade nem tempo para oferecer os cuidados necessários à mãe. Para a idosa, a filha está na escola (tendo aula) e seu filho está fazendo um curso “para ganhar mais dinheiro”, e quer apresentá-lo para futuras pretendentes (o filho é militar e vive em outro estado).
Já no plano de moradia, o maior exemplo e uma das mais antigas moradoras é a Durvalina. Com 104 anos de idade, pelo menos como foi registrada, é visitada semanalmente pela sua filha. Ela passa seus dias de acordo com a rotina da casa, e às vezes gera pequenos “desacordos” com a equipe multidisciplinar sobre seu conceito de moda, pois gosta de usar gorros em pleno calor campograndense. Situações assim costumam acontecer também com a Dona Benedita, 102, amante de leitura, no momento em que pergunta para os profissionais o significado da palavra “crush”. Pode passar alguns dias relendo as mesmas páginas, mas tem opiniões ácidas sobre seu conteúdo. “Ela tem que mandar esse cara ir à merda!”, exclama de sua experiência lendo o romance “A barraca do beijo”.
Alguns ficam apenas por um curto período no “Aconchego da vovó”, como por exemplo a Dona Berenice, que precisa de um cuidado especial 24 horas por dia. Seu filho passou por uma cirurgia pouco tempo atrás e não conseguia dispor dessa função de cuidador da mãe, então, enquanto se recuperava encontrou na hotelaria um conforto para ela repousar temporariamente. Marca presença todos os dias para visitá-la e relembrá-la de sua infância em Aquidauana, e quem sabe, lembrar que é sua mãe.
Uma das diferenças do espaço, é a liberdade de visita a qualquer momento. A família encontra conforto e se sente livre para buscar os idosos ou aparecer sem ser preciso avisar. Léia é esposa de Seu Joel há 15 anos e nos últimos tempos em que Joel é morador da hotelaria, visita seu marido frequentemente, mas não com tanta frequência quanto ela queria porque trabalha o dia inteiro. A esposa acha importante essa presença, para conversar e estar ao lado dele, e ouvi-lo declamando poemas nos melhores momentos. Os dias preferidos de Joel são os mesmos da Dona Olinda, às sextas quando a atividade extra é a musicoterapia. É quando a música levanta os ânimos da casa e faz até mesmo ele levantar da cadeira de rodas para dançar dois por dois com as profissionais. Olinda se anima mais ao ouvir o samba e chega a recordar até de algumas letras.
Outra atividade extra que compõem a rotina do lugar é a pintura às terças-feiras. Não é a atividade preferida de Seu Chrispim, mas ele gosta dos lápis para recordar sua profissão de engenheiro civil e assinar seu nome em alguns “documentos”, mesmo que hoje, com 91 anos, ele não tenha a mesma função motora de anos atrás. No dia a dia, para chamar a atenção, costuma assobiar para atrair olhares das funcionárias ou chamar para conversar.
O quadro de rotinas está por todos os lugares da casa, como lei, facilita tanto para os funcionários quanto para os moradores. Pela manhã, o dia começa com um banho e administração dos medicamentos em jejum, seguidos do café da manhã e próximos medicamentos (que são tabulados e organizados especificamente para cada idoso). Então, antes do horário de almoço, o espaço é aberto para o Home Care, o atendimento externo à casa que alguns realizam como fisioterapia ou fonoaudiologia. As atividades diversas ficam no período da tarde, podem variar entre educação física, musicoterapia, pintura, leitura, terapia ocupacional e aula de dança. Entre a programação, a aferição de sinais vitais ocorre três vezes ao dia. O quadro contém o lema do espaço: “A vida merece cuidados”.
De acordo com o neurologista Gabriel Pereira Braga, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, demência não é uma doença específica e sim um grupo de sintomas e sinais caracterizados pela perda de um ou mais domínios cognitivos com impacto na vida diária. O domínio cognitivo pode ser entendido pelas funções de raciocínio e memória, e as atividades de vida diária têm três níveis de impacto:
Básico: Autocuidado, a higiene e vestimenta;
Intermediário: Gestão da alimentação e transporte;
Avançado: Gestão financeira, trabalho e apreciação de temas abstratos.
A demência se divide em dois grandes grupos: primário e secundário. O primeiro enquadra as doenças neurodegenerativas, como por exemplo o Alzheimer, ou também demências deliberativas, como a doença de Parkinson ou na Afasia primária degenerativa. Já a Demência Secundária pode ser relacionada com a perda de função cognitiva por lesão cerebral, tal como o quadro de traumatismo craniano, doenças por falta de vitaminas, determinadas alterações hormonais ou uma sequência de Acidente Vascular Cerebral (AVC).
A hotelaria “Aconchego da vovó” foca no cuidado de idosos com um tipo de demência: o Alzheimer (O diagnóstico específico de cada idoso não foi citado para respeitar a privacidade). O que marca os sintomas da doença é o início do declínio cognitivo amnésico, a perda de memória de fatos recentes (repetir pergunta; recontar histórias; esquecer onde guarda certos objetos; esquecer de recados; até progredir a confusão no nome de familiares e não conseguir identificar familiares próximos). Quando evoluído para o lobo parietal, o paciente começa a perder a noção espacial. E então no lóbulo frontal, o paciente não consegue manter uma organização e planejamento.
Então todo idoso terá Demência?
Existe também o declínio cognitivo leve, quando há perda de domínio cognitivo, como desatenção e confusão, mas não é grave o suficiente para comprometer as atividades de vida diária. “Este declínio cognitivo pode ou não evoluir a uma demência, dependendo da causa", assegura o médico especialista.
O neurologista afirma que não existe o termo demência senil. “Não há critério para esse diagnóstico, o certo é síndrome demencial e os vários tipos de demência, necessitando analisar a reserva cerebral funcional da pessoa. Quanto maior seu grau de escolaridade, desenvolvimento cerebral, mais reserva você terá aos 80 anos. Dependendo do tipo, há o que ser feito para melhorar o quadro”.
Alguns dias, as memórias retornam e o tempo mantém a linearidade de costume. Em outros, a juventude toma forma em uma realidade em que já não existe. O sentimental pode falar mais alto em certas situações, por isso existe a confabulação para ocupar as lacunas que a memória não preenche. “Não apenas a parte de memória, mas a parte comportamental deve ser tratada também, não só o paciente, mas o cuidador. A carga do cuidador também é muito pesada, o familiar acaba de plantão 24h por dia.”
Cuidado é um conceito amplo, e a preocupação é notável nos gestos de carinho tanto dos visitantes, cuidadores quanto dos profissionais que abraçam o serviço com gentileza e paciência. “Existe um estigma em colocar o paciente em uma casa de repouso, mas não necessariamente é um lugar de abandono, e sim para oferecer cuidados profissionais, que pode ser melhor para o idoso.” E assim, o formato de tempo se mistura em dias e dias.
Muito bom!