A história de Mariely criança e suas longas horas sozinha
Vitória Martins
Qual o maior desejo humano se não a ânsia de ser amado? Atribuir amor a outra pessoa para alguns pode ser uma atividade tão simples e natural quanto abrir os olhos todas as manhãs, já para outros, ele possui um peso diferente: mais duro, cansativo e demonstrado por meio de um valor igualmente significativo, a sobrevivência.
Dizem que dinheiro não compra felicidade, amor ou afeto, mas na vida real, melhores condições financeiras concedem tempo com os filhos, lazer, segurança alimentar e qualidade de vida.
Costumamos enxergar o abandono apenas na falta de presença, como quando alguém vai embora na intenção de não voltar mais, mas e aqueles que ficam e que mesmo na presença, por uma questão socioeconômica, acabam se tornando ausentes?
Uma criança integralmente da mãe
“Minha mãe colocava comida na mesa. Já tava bom, né?”. Essas foram as palavras da jornalista Mariely Rodrigues, de 25 anos, ao ser questionada qual era a linguagem de amor da sua família.
Mariely cresceu em Campo Grande, capital do estado do Mato Grosso do Sul, e foi criada pela mãe Marilene Rodrigues. Teve uma infância pobre, de muitas mudanças de casa, horas sozinha enquanto a mãe trabalhava para colocar comida na mesa, e encontrou nos seus amigos o suporte emocional.
Sua história começa com a mãe grávida aos 17 anos, uma avó religiosa e uma expulsão de casa. “A minha mãe é mãe solo! Meu pai morava com o pai dele e não podia dar conta da minha mãe. Ela foi morar com o tio dela. Morei lá até os dois anos. Minha mãe pagava alguém para cuidar de mim com um salário mínimo de limpeza”.
A jovem relembra sua infância com um pouco mais de 11 anos e em meio às palavras que foram expressadas, surge como um acalanto o termo “rede de apoio”, que segundo o site de pesquisa do Instituto de Psiquiatria do Paraná, caracteriza-se como um conjunto de pessoas e instituições que podem prover suporte em momentos de necessidade, ou seja, é um conjunto de entidades que visam ajudar na manutenção da saúde e do bem-estar psicológico de uma pessoa.
“Eu falo que a minha mãe criou a rede de apoio dela. A gente morava no Pioneiros, e eram três mães solos na mesma rua, com filhos de faixas etárias parecidas. Acabamos nos
aproximando. Então, eu tinha minha melhor amiga, que era a Michelle. A mãe dela era mãe solo de três crianças. No início, passava a tarde toda sozinha, depois no projeto, e depois as tardes eram na casa da Michele. A mãe dela, às vezes, ficava durante o dia em casa, porque ela trabalhava de segurança. E meio que ela era a minha mãe também. Elas meio que se uniam, mas não se viam, porque elas estavam sempre trabalhando”, expressa Mariely.
O termo “mãe solo” é usado para referenciar mulheres que criam seus filhos sem o auxílio de um companheiro e são responsáveis integralmente não só pela educação das crianças, mas também o sustento da família.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, mostra que entre os anos de 2012 e 2022, o número de domicílios chefiados por mães solo cresceu 17,8%, saindo de 9,6 milhões para 11,3 milhões. Ou seja, nos últimos dez anos, houve um aumento de 1,7 milhões de mulheres criando seus filhos e administrando renda familiar individualmente.
Além disso, esse aumento significativo de mães solo é derivado do número qualitativo de mulheres negras, que corresponde a 1,5 milhões do número de crescimento total.
Evolução do número de mães solo
Fonte: Portal FGV
Dona Marilene, mãe de Mariely, fazia parte dos 6,9 milhões de mães solo autodeclaradas negras no Brasil daquele período, e mesmo com todos os desafios, trabalhava dia e noite para dar o melhor que podia para a filha.
A mãe e uma ausência obrigatória
“Ela me teve... Ela trabalhava das sete da manhã até dez horas da noite. Não tinha como ela me levar pra conviver com o resto da minha família. Minha mãe trabalhava de domingo a domingo com folga na quarta-feira. Quarta-feira eu estava na escola e no projeto. Isso é uma falta, porque não entra só a falta dos pais. Eu nunca tive meu pai. Meu pai se mudou para Curitiba quando eu tinha uns cinco anos para trabalhar”, relembra Mariely.
A jornalista conta que para aliviar as horas sem um adulto responsável em casa, ainda no final da infância e no início da adolescência, a mãe a matriculou em um projeto social que ofertava reforço escolar, pintura, teatro e almoço. Naquele ambiente, ela ocupava pelo menos 5h das 10h que ficaria sozinha. Relembra também os dias em que a mãe chorava ao deixá-la às 11h30 no portão do projeto, que abria às 13h, mas não tinha outra escolha, pois o horário do almoço no trabalho estava terminando.
Projetos sociais são uma importante atividade para minimizar a desigualdade social, transformar realidades e beneficiar o coletivo. As entidades responsáveis são denominadas como Organização Não Governamental (ONGs), ou fazem parte do Terceiro Setor com uma Organização da Sociedade Civil (OSC).
Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta que o Brasil tem 25,3% da população abaixo da linha da pobreza, o que corresponde a 52,5 milhões de pessoas. Por esse motivo, os projetos de bem coletivo são ferramentas que fazem a diferença na vida de milhares de pessoas, sendo muitas vezes a única alternativa para acesso à cultura, lazer, alimentação, moradia e entre outros.
A jovem jornalista admitiu ter uma relação conturbada com a mãe por mais de 20 anos, assumindo que nem sempre a entendeu. As palavras: “a minha mãe era violenta, estressada”, seguidas de: “ela tem uma raiva que eu falo que é de berço. A minha família era muito pobre” e depois, um longo histórico familiar de repetição de ciclos de abandono. A perda de um pai ainda na infância que trabalhava e bebia muito, crianças criadas por irmãos ou parentes próximos, e mais uma vez, a falta.
Em uma nova fase da sua vida, uma outra pessoa surgiu na vida de Mariely.
Hoje, aos 25 anos, Mariely Rodrigues, filha de Marilene Rodrigues, conta que passou a entender a mãe quando começou a trabalhar. Estudava, fazia estágio por 6h e mantinha um emprego em uma loja por mais meio período, chegava exausta e a única coisa que pensava era: “ eu ia enlouquecer, ficar louca, se uma criança tivesse me pedindo ajuda com a tarefa”. Depois das longas horas trabalhadas, pensava na mãe também sozinha, fazendo ao máximo para alimentar, vestir e dar uma vida digna para uma criança. “É muito, sabe? É muito para uma pessoa sozinha!”.
Se até aqui você imaginou como seriam nossas personagens da vida real, conheça Mariely e sua mãe.
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